Tanto o quadrinho, quanto a adaptação cinematográfica V de Vendetta* (no Brasil V de Vingança) induz o leitor/telespectador a refletir sobre a política.
V de Vingança é o quadrinho mais político de Alan Moore, isto é, V de Vingança é explicitamente uma crítica/denuncia ao neoliberalismo instaurado na Inglaterra durante o governo de Margaret Thatcher.**
A trama de V de Vingança é ambientada em um futuro distópico, isto é, em um futuro não muito distante onde uma guerra nuclear quase dizimou toda a humanidade, a Inglaterra é uma das poucas (se não a única) nação remanescente ao apocalipse, entretanto, a Inglaterra vive sob a tutela de um regime totalitário, isto é, fascista. Após a guerra nuclear, varias facções tentaram manter-se no poder, no entanto, apenas um grupo com ideais ultranacionalista mantém-se no poder, deste modo, instaura o regime fascista. Para manter-se no poder, o governo censura os meios de comunicação, a televisão e o rádio tem apenas uma finalidade: divulgar as maravilhas do regime, deste modo as expressões culturais também sofrem represálias, ou seja, apenas o regime possui o poder, consequentemente a sociedade inglesa é subjugada pelo governo que monitora os seus cidadão através de meios de comunicação e pela policia.
Numa noite aparentemente qualquer surge o misterioso anti-herói V, não se sabe a identidade do personagem, desde a sua primeira aparição V declara guerra ao regime, deste modo, V assassina cada membro relevante para o funcionamento do regime, sobrando apenas o líder. Mas quais são as motivações de V para acabar com o governo? Movido pelo desejo de vingança, V pretende provocar uma revolução, somente com a revolução que a liberdade seria "devolvida" ao povo. A partir desta breve apresentação cabe investigar os conceitos Estado autoritário*** e liberdade.
No livro O que é poder, do filósofo francês Gérard Lebrun (1930-1999) faz um breve comentário sobre o autoritarismo. "O totalitarismo é um modo de poder que exige (ou supõe) a integração total do sujeito/súdito no Estado, a sua total adesão à religião (ou à ideologia) estatal, o pagamento de toda fronteira existente entre Estado e sociedade civil."
Em um regime autoritário a democracia é sufocada, isto é, os direitos são reduzidas e transformadas em deveres, a população é manipulada a partir do discurso do medo e ódio, partidos políticos são extintas, deste modo não há um partido que se oponha a autoridade do regime, e toda manifestação que critique a legitimidade do Estado também é sufocado. Os meios de comunicação é essencial para o funcionamento do Estado totalitário, pois enaltece a legitimidade do mesmo. No verbete autoritarismo do Dicionário de política, de Norberto Bobbio et al. faz a seguinte menção:
Nos regimes autoritários a penetração-mobilização da sociedade é limitada: entre Estado e sociedade permanece uma linha de fronteira muito precisa. Enquanto o pluralismo partidário é suprimido de direito ou de fato, muitos grupos importantes de pressão mantêm grande parte da sua autonomia e por consequência o Governo desenvolve ao menos em parte uma função de árbitro a seu respeito e encontra neles um limite para o próprio poder. Também o controle da educação e dos meios de comunicação não vai além de certos limites. Muitas vezes é tolerada até a oposição, se esta não for aberta e pública. Para alcançar seu objetivos, os Governos autoritários podem recorrer apenas aos instrumentos tradicionais do poder político: exercito, polícia, magistratura e burocracia.Tais características mencionadas acima podem ser observadas na Inglaterra de V de Vingança. Mesmo tendo a vingança como principal motivação V estimula a população como um todo a se rebelar contra o sistema opressor, esmo que seja uma rebelião de caráter violenta, para V o único meio da Inglaterra tornar-se livre é através da revolução. No entanto o que é liberdade?
Uma das definições de liberdade pode ser encontrado no Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagano.
I Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é a ausência de condições e limites. II liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente,a auto determinação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substancia, Estado); III liberdade como possibilidade de escolha, segundo a qual liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. Não constituem conceitos diferentes as formas que a liberdade assume nos vários campos, como por exemplo liberdade metafísica, liberdade moral, liberdade política, liberdade econômica e etc. A disputas metafísicas, morais políticas, econômicas, etc, em torno da liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam.Levando em consideração a definição acima e o objetivo final de V, uma revolução, percebemos que o ideal de liberdade de V diverge como o ideal de liberdade tradicional, ou seja, os ideais revolucionários de V são provindas da filosofia anarquista de Mikhail Bakunin (1814-1876).
Assim como para Bakunin, V também é contrário a liberdade individual, ou seja, se é possível a liberdade existir, ela só é possível a partir da coletividade.
A liberdade só existe quando todas as hierarquias sociais são destruídas, hierarquias esta criada pelos lideres sociais. Não é a toa, que V convoca a população para a revolução, pois o anti-herói entende que deve ser um instrumento, ou seja, o propósito de V ñ é apenas dele, pois se transforma numa ideia, ao transformar-se em uma ideia, V conclui a sua vingança, destrói o regime autoritário em sua totalidade, ou seja, não existe mais órgãos ou um personalidade carismática que represente a velha política, deste modo, a população inglesa é livre para reinventar-se socialmente.
V de Vingança é a obra que mais explícita o descontentamento de Alan Moore com o capitalismo, isto é, o seu quadrinho é uma crítica ao governo de Thatcher, onde o roteirista crítica as propagandas políticas, as escolhas políticas da Dama de Ferro em relação a economia (ao neoliberalismo) e a violência do Estado com o povo. V de Vingança não é apenas uma obra icônica das HQs, a popularização do quadrinho também se dá justamente as suas críticas sociais e a popularização da máscara de Guy Fawkes, sendo a máscara um símbolo das manifestações populares da contemporaneidade.
Ainda é possível fazer a seguinte interpretação da HQ de Moore & Lloyd: é uma obra que convida o leitor a refletir sobre a política contemporânea no Ocidente, e o papel do povo na democracia.
* A hq V de Vingança (1982-1988) foi criado e roteirizado por Alan Moore (1953 - ) e ilustrado por David Lloyd (1950 - ).
** Margaret Thatcher (1925-2013), foi primeira ministra do Reino Unido durante os períodos 1979-1990.
***Para fins didáticos os conceitos autoritarismo e totalitarismo são tidos como sinônimos.
Para Assistir:
El Poder de las Ideas: V de Vendetta (espanhol).
José Alves de Freitas Neto: Foi para isto que lutamos pela liberdade?
O que é anarquismo?
O que é fascismo?
Slavoj Zizek: Down with ideology! (alemão/inglês).
V de Vingança
V de Vingança: críticas ao Totalitarismo e ao Thatcherismo.
V de Vingança: o poder das palavras e o anarquismo.
Para ler:
Alan Moore & David Lloyd. V de Vingança.
Caio Túlio Costa. O que é anarquismo.
Gérard Lebrun. O que é poder.
João Gabriel da Fonseca Mateus. O conceito de liberdade em Mikhail Bakunin.
Marilena Chauí. O que é ideologia.
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