segunda-feira, 27 de abril de 2020

Seria a franquia Uma Noite de Crime uma alusão ao anarquismo?

A franquia Uma noite de crime, dirigida por James DeMonaco possui um posicionamento político claro: a de tecer críticas aos governos que adotam políticas neoliberais e conservadoras. Mesmo possuindo um posicionamento alinhado ao campo progressista, é possível traçar um paralelo entre os filmes de DeMonaco com o anarquismo?
Toda franquia se passa em um futuro próximo, devido as diversas crises que o país passou, o Estado Norte-americano adota  uma vez ao ano, 12h de expurgo, isto é, 12h sem lei, onde todos podem extravasar, ou seja, roubos, assassinatos são permitidos e são e assegurados pelo Estado, após essas 12h de expurgo, tudo volta a rotina, como nada tivesse acontecido.
Devido a essa premissa é possível traçar um paralelo com o anarquismo, entretanto, Uma noite de crime não é uma alusão ao anarquismo, mesmo havendo violência gratuita de maneira explícita, a franquia tem como finalidade a de revelar como as classes sociais mais altas se aproveitam do momento para dizimar a classe mais pobre da forma mais violenta possível e que suas atitudes sejam protegidas pelo Estado, sobre o pretexto de ser a noite de expurgo.
Ao longo das tramas fica claro quem são os principais afetados na noite de expurgo, as comunidades periféricas, ou seja, a população menos privilegiada economicamente, os moradores de ruas e a população negra também são alvos fáceis. A metáfora da noite de expurgo é uma crítica ao capitalismo, ou seja, ao sistema as políticas neoliberais. O neoliberalismo tem como principio o Estado mínimo, ou seja, pouca interferência do Estado com as políticas públicas e mais liberdade individual.
Como também é retratado no filme, o modelo neoliberal esta fadado ao fracasso, isto é, ao neoliberalismo contribui para o aceleramento do colapso do sistema capitalista. De algum modo, os filmes convidam o espectador a refletir sobre a política contemporânea e as políticas adotadas pelas respectivas nações, quais são os impactos destas escolhas políticas, quais são as consequências do neoliberalismo em certos grupos sociais, mesmo tecendo uma crítica ao capitalismo, cabe levantar a seguinte questão: qual é a alternativa além do capitalismo? 

Para assistir (filmes e série):

A primeira noite de crime, 2018.
Uma noite de crime, 2018 - 
Uma noite de crime, 2013.
Uma noite de crime 2: Anarquia, 2014.
Uma noite de crime 3: Ano de eleição, 2016.

Para assistir (vídeos):


Para ler:

Caio Túlio Costa. O que é anarquismo.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Ficção científica e filosofia

Responder o que é ficção científica é tão audaciosa quanto  responder o que é vida ou o que é filosofia. Oficialmente o gênero literário ficção científica surge com a publicação da obra Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818), da inglesa  Mary Shelley, entretanto, obras anteriores ao lançamento de Frankenstein como A República  (367 a.C.), de Platão, História Verdadeira (séc. II), de Luciano Samósata, A Nova Atlântida (1629), de Francis Bacon, Somnium (1634), de Johannes Kepler também são consideradas como ficção científica, ou que contribui para a formulação do gênero. Além de Mary Shelley, o também inglês H.G. Wells e o francês Júlio Verne também são tidos como os pioneiros da ficção científica. Com a consolidação do cinema, surge em 1902 o primeiro filme de ficção científica: Viagem à lua, dos irmãos Méliès. O filme é uma adaptação das obras literárias Da Terra a Lua (1865), do Júlio Verne e Os Primeiros Homens na Lua (1901), de H.G. Wells.
Em poucas palavras é possível afirmar que a ficção científica apresenta os avanços da tecnologia científica e quais são os seus impactos na sociedade, seja de modo positivo, negativo e/ou de modo relativo/banal, ou seja, a ficção científica pode ser interpretada como divulgação científica, sátira e crítica social. 
Deste modo questões como o que é a ciência/técnica? e qual a sua relevância/impacto na vida de uma determinada sociedade começam a fazer sentido. Também é possível traçar um paralelo entre a ficção científica com a filosofia, pois, tópicos abordados na ficção científica são pertinentes à filosofia. 
Trazendo para a contemporaneidade questões como autoritarismo, cibernética, ética e existencialismo são temas recorrentes na F.C.*
A trilogia Matrix (1999 - 2003), das irmãs Wachowskis é uma produção cinematográfica que possui grande influencia da vertente cyberpunk, além disso, a trilogia também recebe influência da filosofia ocidental e filosofia oriental, sendo este último em um sentido mais metafísico. No primeiro filme há um easter egg filosófico, em uma cena o personagem Neo apanha o livro Simulacros e Simulação (1981), do filósofo francês Jean Braudrillard. Entretanto, este não é a única menção a filosofia. Um dos personagens mais emblemático do filme é Morpheus:
"O que é real? Como define real? Se você está falando do que pode ser cheirado, provado e visto, então real é simplesmente um sinal elétrico interpretado pelo nosso cérebro."
Seria a realidade uma simulação, ou nas palavras de Platão, seria a realidade apenas sombras? Existe algum modo de conhecer o real? Um questionamento que perpassa de Platão até Zizek.
No filme Blade Runner: O Caçador de Androides (1982), de Ridley Scott. Deckard conhece a androide Rachel, uma androide com memórias humanas. Depois de uma breve conversa, porém tenso e uma série de eventos, surge um fenômeno estranho entre os dois personagens, um relacionamento amoroso.
Poderia um humano relacionar-se amorosamente com uma androide? O que faz de Deckard um humano e Rachel uma androide? Uma tentativa de encontrar uma solução para esta problemática é recorrer ao filósofo francês René Descartes. Para Descartes o que distingue o homem do animal é a racionalidade e a alma. A partir desta proposição o filósofo ira desenvolver o seu raciocínio, na qual mais tarde ira culminar no racionalismo.
Em Frankenstein há problemas semelhantes como a de Blade Runner, entretanto, é Shelley que pela primeira vez que ira apresentar aos seus leitores a ideia de inteligência artificial (I.A.). Questões sobre que é consciência e o que é inteligência artificial podem ser exploradas a partir da obra de M.S. Filósofos analíticos como Daniel Dennett, David Chalmers, João de Fernandes Teixeira e John Searle são alguns que debruçam sobre esse tema.
Outro trabalho cinematográfico de Ridley Scott  Prometheus (2012), é apresentado o emblemático o robô David, criado pelo magnata Peter Weyland, ao longo da trama vemos uma relação entre os dois, ou seja, existe a clara alusão ao revolta da criatura contra o seu criador, no entanto, David também pretende criar vida, para demonstrar a sua superioridade ao seu criador. Deste modo, surge o problema da criação, Deus existe, porque ele nos criou, existe um propósito para a humanidade, o livre-arbítrio existe ou tudo esta determinado? Santo Agostinho, Kant e Sartre são alguns  nomes que abordará  estes grandes temas em suas reflexões.
Assim como a filosofia é um campo de estudos inesgotável devido a sua amplitude, a ficção científica também é um campo inesgotável, deste modo, provocações e reflexões sobre o rumo da humanidade irão perdurar, pelo menos até a humanidade existir...

*Para não ser repetitivo demais será usado a abreviação de ficção científica F.C.

Para assistir (filmes):

2001: Uma Odisseia no Espaço, 1968.
A.I. Inteligência Artificial, 2001. 
Akira, 1988.
Alien, o Oitavo Passageiro, 1979.
A Chegada, 2016.
Blade Runner: O Caçador de Androides, 1982.
Blade Runner 2049, 2017.
Efeito Borboleta, 2004.
Eles Vivem, 1988.
Ex_Machina: Instinto Artificial, 2014.
Exterminador do Futuro, 1984.
Frankenstein, 1931.
I Am Mother, 2019.
Interestelar, 2014. 
Invasores de Corpos, 1978.
Matrix, 1999.
Metrópolis, 1927.
O Dia que a Terra Parou, 1951.
O Enigma de Outro Mundo, 1982.
O Homem Invisível, 1933.
O Homem Invisível, 2020.
O Homem sem Sombra, 2000.
Os Doze Macacos, 1995.
Planeta dos Macacos, 1968.
Prometheus, 2012.
Time Lapse, 2014.
Uma História de Amor e Fúria, 2013.
Viagem à Lua, 1902.
Westworld, 1973.

Para assistir (séries):

3%, 2016 -
Altered Carbon, 2018 -
Black Mirror, 2011 - 
Dark, 2017 -
Doctor Who 2005 - 
Project Blue Book, 2019 -
Rick and Morty 2013 -
Star Trek, 1966 - 1968.
Terminator: The Sarah Connor Chronicles, 2008 - 2009.
The Origin (2018).
The Outer Limits, 1963 - 1965.
The Twilight Zone, 1959 - 1964.
The Twilight Zone, 2019 -
X-Files, 1993 - 2018.
Westworld, 2011 -

Para assistir (youtube):


Para ler:

Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo.
Arthur C. Clarke. 2001: Uma Odisseia no Espaço. 
George Orwell. 1984.
H.G. Wells. A Guerra dos Mundos.
H.G. Wells. A Ilha do Dr. Moreau.
H.G. Wells. A Máquina do Tempo.
H.G. Wells. O Homem Invisível.
Héctor Gérman Oesterheld e Francisco Solano Lopéz. O Eternauta.
Isaac Asimov. Eu Robô.
Isaac Asimov. O Fim da Eternidade.
Júlio Verne. Viagem ao Centro da Terra.
Júlio Verne. Vinte Mil Léguas Submarinas.
Mark Rowlands. Scifi=scifilo.
Mary Shelley. Frankenstein ou o Prometeu Moderno.
Paolo Eleuteri Serpieri. Druuna.
Philip K. Dick. Androides sonham com ovelhas elétricas?
Ray Bradbury. Fahrenheit 451.
William Gibson. Neuromancer.
William Irwin. Matrix - Bem-vindo ao deserto do real.


sábado, 11 de abril de 2020

HQs e os anos 80

Comumente as HQs são tidas como meros produtos de consumo, isto é, de entretenimento ou que não devem ser levados a sério, pois não propõem uma reflexão sobre alguma temática. Certamente os anos 1980 é um marco para a histórias em quadrinhos norte americanos. Nomes como Alan Moore (1953 - ), Art Spiegelman (1948 - ), Frank Miller (1957 - ), Grant Morrison (1960 - ) e Neil Gaiman (1960 - ) contribuíram para um novo olhar sobre as HQs, posteriormente alguns trabalhos destes autores tornaram graphic novels, ganhando prêmios como o Pulitzer e ganhando legitimidade como gênero literário.
Quadrinhos de super-heróis como Batman a Piada Mortal (1988), Batman o Cavaleiro das Trevas (1986), Miracleman (1982) e Monstro do Pântano (1983-1987)*, Surfista Prateado Parábola (1988) e Watchmen (1986-1987) deixaram as suas marcas no gênero. Nas obras mencionadas os personagens são mais humanizadas, isto é, não são mais tidos como personalidades com características messiânicas, são vigilantes mascarados extremamente violentos apenas preocupados com seu ego, ou seja, o conceito de herói clássico comumente retratados nos quadrinhos são desconstruídos, questões éticas podem ser levantadas a partir deste ponto, para ilustrar esta desconstrução do herói podemos citar a graphic novel Watchmen, sendo mais especifico o vigilante mascarado  Comediante. Mesmo sendo considerado como um herói, as atitudes do Comediante não condiz com tal: criminoso de guerra, estuprou sua colega de grupo, mata seus inimigos, mesmo tendo com esses feitos, o Comediante possui o consentimento do Estado estadunidense para agir. Deste modo, é correto que Watchmen crítica e satiriza a imagem do super-herói. Se houvesse combatentes do crime mascarados na vida real eles seriam psicopatas. A saga do Alan Moore em Monstro do Pântano levanta uma serie de questões relacionado ao meio ambiente. Surfista Prateado Parábola problematiza o discurso político, na obra é apresentado as consequências do discurso político em uma sociedade alienada, pois trará consequências como o fanatismo religioso e o discurso de ódio, deste modo fragiliza a democracia. 
Saindo do nicho dos super-heróis temos Maus, uma graphic novel escrita e ilustrada por Art Spiegelman, Maus narra o relato de um sobrevivente judeu (pai do autor) no campo de concentração polonês de Auschwitz. Além de levantar questões existenciais e políticas, a obra relata as mais duras consequências das medidas tomadas de um Estado extremista como o regime nazista, ou seja, as escolhas políticas devem ser analisadas de maneira cautelosa, pois trará consequências ao longo da história, sejam elas positivas ou negativas. 
Deste modo, torna-se visível que a década de 1980 é um marco para as histórias em quadrinhos, pois ela não é vista como um produto infantil e de entretenimento. Ou seja, a leituras e interpretações das HQs são tidas como ponto de partida ou aprofundamento de alguma analise de caráter crítica/reflexiva.

*Ambas as histórias foram escritas por Alan Moore.

Para assistir:


Para ler:

Alan Moore. A Saga do Monstro do Pântano.
Art Spiegelman. Maus.
Gian Danton. Watchmen e a Teoria do Caos.
Grant Morrison. Homem Animal o Evangelho do Coiote.
Stan Lee e Moebius. Surfista Prateado Parábola.
Willian Irwin (org.). Super Heróis e a filosofia.
Willian Irwin (org.). Watchmen e a filosofia.

Para ouvir:

terça-feira, 7 de abril de 2020

Cinema e filosofia

A filosofia é um vasto campo de estudo, também é uma área do conhecimento que possibilita o diálogo com as demais áreas do conhecimento, um diálogo possível é com as artes visuais, para ser mais específico, com o cinema.
Embora o cinema seja visto com maus olhos, isto é, uma produto da cultura de massa, consequentemente uma ferramenta para a alienação. Entretanto, as produções cinematográficas tem contribuído para reflexão, seja no espaço acadêmico ou não acadêmico. Filmes como Blade Runner, de Ridley Scott levantam questões existenciais como o que é ser humano? O que significa ser humano em um mundo onde androides (a cada geração fica mais difícil  distinguir um androide de um humano) convivem e interagem diariamente? O filme Planeta dos Macacos, de Franklin J. Schaffner também convida o espectador a refletir sobre os avanços da ciência, na qual pode causar a própria destruição da humanidade. A trilogia dos mortos-vivos de George Romero é uma crítica social, uma metáfora para trazer a tona problemas como a alienação/ausência do senso crítico nos personagens que de alguma forma representa o Estado (ou o que sobrou do Estado) e o consumismo. A aproximação do cinema com a filosofia também também serve como ferramenta didática em sala de aula, seja no ensino básico (fundamental e médio) ou superior.
Assim como a filosofia, as produções cinematográfica expressa/manifesta e problematiza os eventos de sua época, filmes como Uma noite de crime (2013), de James DeMonaco; Bacurau, de Kleber Mendonça Filho;  Joker (2019), de Todd Phillips e Parasita (2019), de Bong Joon-ho são pertinentes para pensar o cenário político contemporâneo. 
Embora os filmes mencionados pertençam a gêneros diferentes e o público-alvo seja diferente, os filmes possuem pontos em comum: a desigualdade social e lutas de classe. Todas as obras fazem questão em explicitar a desigualdade social, também é apresentado de que a partir de certos eventos (exceto os filmes Parasita e Uma noite de crime) uma revolução social violenta é inevitável. 
Deste modo, estas produções causam desconforto nos espectadores, Bacurau surge num período delicado do cenário político brasileiro, além do filme ser uma desconstrução do estereótipo da cidade remota e seus moradores serem ingênuos e pacíficos ou de que a cidade não possui uma identidade própria. O filme de Todd Phillips também flerta com a ideia de uma revolução social numa Gotham City decadente a partir das atitudes do Coringa, na qual, de modo superficial (errônea) uma revolução anarquista. Ou seja, muitas das produções cinematográficas de 2019, são enquadrado como uma crítica a violência desproporcional promovido pelo capitalismo, ou seja, são filmes que possuem um viés político. 
Mesmo possuindo um viés político e outras camadas subjetivas, o cinema proporciona a filosofia experiência positiva, isto é, o diálogo entre cinema e filosofia, contribui para o debate publico sobre diversos temas e diversas perspectivas.

Para assistir (filmes):

2001: Uma Odisseia no Espaço, 1968.
A Ilha, 2005.
A Noite dos Mortos-vivos,  1968.
Bacurau, 2019.
Blade Runner: O Caçador de Androides, 1982.
Despertar dos Mortos-vivos, 1978.
Ela, 2014.
Frankenstein, 1931.
Hamlet, 1948.
Joker, 2019.
Matrix, 1999.
O Homem Invisível, 1933.
O Mestre, 2013
O Poço, 2019.
O Sétimo Selo,  1957.
Parasita, 2019.
Planeta dos Macacos, 1968.
Tempos Modernos, 1936.
Você não conhece Jack, 2010.

Para assistir (youtube):

A estética do cinema por Walter Benjamin.
Bacurau é bom?
Bacurau: A verdadeira polarização. 
Cinema e filosofia.
Cinema e filosofia: Os filósofos de Rossellini.
Cinéphilosophie: Philosophy goes to the movies (inglês).
Coringa é bom?
Curso de filosofia contemporânea FBP: Deleuze e o cinema. 
Descobrindo a filosofia com Pondé: Filosofia no cinema.
Parasita é bom?
Parasite: Perfecting class critique (inglês)
Ser parasita (2019) é inevitável no capitalismo
Slavoj Zizek. O guia pervertido do cinema (legenda em espanhol).
The philosophy of Christopher Nolan, part 01 (legenda em português).
The philosophy of Christopher Nolan, part 02 (inglês).
The philosophy of Christopher Nolan, part 03 (inglês).
The philosophy of Miyazaki (legenda em português).

Para ler:

 Alessandro Reina. Filosofia e Cinema: O uso do filme no processo-aprendizagem da filosofia (dissertação de mestrado).
André Bazin. O que é cinema?
Clóvis Gruner. A cidade como filme: Cinema e cultura moderna na Curitiba da Primeira República.
David Bordwell; Kristin Thompson e Roberta Gregoli. A arte do cinema: Uma introdução.
Gilles Deleuze. Cinema 1: A Imagem-movimento.
Gilles Deleuze. Cinema 2: A Imagem-tempo.
Jean-Claude Bernadet. Cinema brasileiro: propostas para uma história.
Jean-Claude Bernadet. O que é cinema.
Julio Cabrera. O Cinema pensa: Uma introdução à filosofia através dos filmes.
Laura Aidar. Bacurau: Análise do filme.
Laécio de Almeida Gomes. A filosofia e o cinema catástrofe: "O dia depois de amanhã" e a relação Homem x Natureza.
Renato Dias Baptista. "Bacurau" e "Parasita": Alegorias políticas contemporâneas.
Rodrigo Cássio Oliveira. Os diferentes olhares da filosofia sobre cinema.
Rodrigo Nunes. 'Bacurau' não é sobre o presente, mas o futuro.
Serguei Einsenstein. A forma do filme.
Serguei Einsenstein. O sentido do filme.
Theodor Adorno e Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento.
Yuri Ferreira. 'Bacurau' e 'Parasita' se encontram na lutas de classe e no espírito de resistência.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Uma reflexão política a partir de V de Vingança


Tanto o quadrinho, quanto a adaptação cinematográfica V de Vendetta* (no Brasil V de Vingança) induz o leitor/telespectador a refletir sobre a política.
V de Vingança é o quadrinho mais político de Alan Moore, isto  é, V de Vingança é explicitamente uma crítica/denuncia ao neoliberalismo instaurado na Inglaterra durante o governo de Margaret Thatcher.**
A trama de V de Vingança é ambientada em um futuro distópico, isto é, em um futuro não muito distante onde uma guerra nuclear quase dizimou toda a humanidade, a Inglaterra é uma das poucas (se não a única) nação remanescente ao apocalipse, entretanto, a Inglaterra vive sob a tutela de um regime totalitário, isto é, fascista. Após a guerra nuclear, varias facções tentaram manter-se no poder, no entanto, apenas um grupo com ideais ultranacionalista mantém-se no poder, deste modo, instaura o regime fascista. Para manter-se no poder, o governo censura os meios de comunicação, a televisão e o rádio tem apenas uma finalidade: divulgar as maravilhas do regime, deste modo as expressões culturais também sofrem represálias, ou seja, apenas o regime possui o poder, consequentemente a sociedade inglesa é subjugada pelo governo que monitora os seus cidadão através de meios de comunicação e pela policia.
Numa noite aparentemente qualquer surge o misterioso anti-herói V, não se sabe a identidade do personagem, desde a sua primeira aparição V declara guerra ao regime, deste modo, V assassina  cada membro relevante para o funcionamento do regime, sobrando apenas o líder. Mas quais são as motivações de V para acabar com o governo? Movido pelo desejo de vingança, V pretende provocar uma revolução, somente com a revolução que a liberdade seria "devolvida" ao povo. A partir desta breve apresentação cabe investigar os conceitos Estado autoritário*** e liberdade.
No livro O que é poder, do filósofo francês Gérard Lebrun (1930-1999) faz um breve comentário sobre o autoritarismo. "O totalitarismo é um modo de poder que exige (ou supõe) a integração total do sujeito/súdito no Estado, a sua total  adesão à religião (ou à ideologia) estatal, o pagamento de toda fronteira existente entre Estado e sociedade civil."
Em um regime autoritário a democracia é sufocada, isto é, os direitos são reduzidas e transformadas em deveres, a população é manipulada a partir do discurso do medo e ódio, partidos políticos são extintas, deste modo não há um partido que se oponha a autoridade do regime, e toda manifestação que critique a legitimidade do Estado também é sufocado. Os meios de comunicação é essencial para o funcionamento do Estado totalitário, pois enaltece a legitimidade do mesmo. No verbete autoritarismo do Dicionário de política, de Norberto Bobbio  et al. faz a seguinte menção:
Nos regimes autoritários a penetração-mobilização da sociedade é limitada: entre Estado e sociedade permanece uma linha de fronteira muito precisa. Enquanto o pluralismo partidário é suprimido de direito ou de fato, muitos grupos importantes de pressão mantêm grande parte da sua autonomia e por consequência o Governo desenvolve ao menos em parte uma função de árbitro a seu respeito e encontra neles um limite para o próprio poder. Também o controle da educação e dos meios de comunicação não vai além de certos limites. Muitas vezes é tolerada até a oposição, se esta não for aberta e pública. Para alcançar seu objetivos, os Governos autoritários podem recorrer apenas aos instrumentos tradicionais do poder político: exercito, polícia, magistratura e burocracia.
 Tais características mencionadas acima podem ser observadas na Inglaterra de V de Vingança. Mesmo tendo a vingança como principal motivação V estimula a população como um todo a se rebelar contra o sistema opressor, esmo que seja uma rebelião de caráter violenta, para V o único meio da Inglaterra tornar-se livre é através da revolução. No entanto o que é liberdade?
Uma das definições de liberdade pode ser encontrado no Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagano.
I Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é a ausência de condições e limites. II liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente,a auto determinação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substancia, Estado); III liberdade como possibilidade de escolha, segundo a qual liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. Não constituem conceitos diferentes as formas que a liberdade assume nos vários campos, como por exemplo liberdade metafísica, liberdade moral, liberdade política, liberdade econômica e etc. A disputas metafísicas, morais políticas, econômicas, etc, em torno da liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam.
Levando em consideração a definição acima e o objetivo final de V, uma revolução,  percebemos que o ideal de liberdade de V diverge como o ideal de liberdade tradicional, ou seja, os ideais revolucionários de V são provindas da filosofia anarquista de Mikhail Bakunin (1814-1876).
Assim como para Bakunin, V também é contrário a liberdade individual, ou seja, se  é possível a liberdade existir, ela só é possível  a partir da coletividade.
A liberdade só existe quando todas as hierarquias sociais são destruídas, hierarquias esta criada pelos lideres sociais. Não é a toa, que V convoca a população para a revolução, pois o anti-herói entende que deve ser um instrumento, ou seja, o propósito de V ñ é apenas dele, pois se transforma numa ideia, ao transformar-se em uma ideia, V conclui a sua vingança, destrói o regime autoritário em sua totalidade, ou seja, não existe mais órgãos ou um personalidade carismática que represente a velha política, deste modo, a população inglesa é livre para reinventar-se socialmente.
V de Vingança é a obra que mais explícita o descontentamento de Alan Moore com o capitalismo, isto é, o seu quadrinho é uma crítica ao governo de Thatcher, onde o roteirista crítica as propagandas políticas, as escolhas políticas da Dama de Ferro em relação a economia (ao neoliberalismo) e a violência do Estado com o povo. V de Vingança não é apenas uma obra icônica das HQs, a popularização do quadrinho também se dá justamente as suas críticas sociais e a popularização da máscara de Guy Fawkes, sendo a máscara um símbolo das manifestações populares  da contemporaneidade.
Ainda é possível fazer a seguinte interpretação da HQ de Moore & Lloyd: é uma obra que convida o leitor a refletir sobre a política contemporânea no Ocidente, e o papel do povo na democracia.

* A hq V de Vingança (1982-1988) foi criado e roteirizado por Alan Moore (1953 -  ) e ilustrado por David Lloyd (1950 - ).
** Margaret Thatcher (1925-2013), foi primeira ministra do Reino Unido durante os períodos 1979-1990.
***Para fins didáticos os conceitos autoritarismo e totalitarismo são tidos como sinônimos. 

Para Assistir:

El Poder de las Ideas: V de Vendetta (espanhol).
José Alves de Freitas Neto: Foi para isto que lutamos pela liberdade?
O que é anarquismo?
O que é fascismo?
Slavoj Zizek: Down with ideology! (alemão/inglês).
V de Vingança
V de Vingança: críticas ao Totalitarismo e ao Thatcherismo.
V de Vingança: o poder das palavras e o anarquismo.

Para ler:

Alan Moore & David Lloyd. V de Vingança.
Caio Túlio Costa. O que é anarquismo.
Gérard Lebrun. O que é poder.
João Gabriel da Fonseca Mateus. O conceito de liberdade em Mikhail Bakunin.
Marilena Chauí. O que é ideologia.