Apesar de o fundador da
psicanálise Sigmund Freud ter considerado que a idade do adulto maduro não
seria recomendável e/ou viável ao processo psicanalítico, em razão da “pouca
elasticidade mental” (FREUD 1905/1977 apud ALTMAN, 2011, p.195), além de uma
diminuição da atividade sexual dos processos psíquicos primários e de uma
possível dificuldade de simbolização (FILHO, SANTOS, 2007), os estudos
psicanalíticos clássicos, como aqueles desenvolvidos por Abrahan (1919/1970
apud ALTMAN, 2011), e os contemporâneos, como os de Segal (1982 apud ALTMAN,
2011), demonstraram que, a despeito do que considerou Freud, o trabalho
analítico com idosos pode ser profícuo, funcional e ampliativo no sentido de
construção de ressignificações e de criação de novas narrativas para as
vivências que o adulto maduro experenciou durante a sua vida e para ocorrências
que despontam com maior iminência nesse período de vida, como os lutos, as
perdas físicas e cognitivas, as limitações, as dependências e a morte.
Freud pode ter enxergado que
o adulto maduro vive o que Lacan (2008a) chamou de “afânise”, ou seja, uma
diminuição da atividade desejante e a perda de energia libidinal do desejo, afrouxando
os processos psíquicos primários que, como sustentou Freud durante todo o
desenvolvimento primeiro da psicanálise, são os processos motrizes de toda a
vida psíquica do sujeito. Contudo, no filme “E se vivêssemos todos juntos”
(2012), do início ao fim, há uma desconstrução dessa mentalidade de que o
adulto maduro passa por uma diminuição da atividade psicossexual e vive pautado
por regressões de libido. Todas as personagens do filme ainda mantêm uma
sexualidade ativa, e a protagonista Jeanne sempre faz questão de ressaltar,
durante os passeios com o etnólogo que passa a conviver com a comunidade de
idosos amigos, Dirk, que a atividade sexual se mantém em mesma intensidade que
na juventude, mas com contornos diferentes, sendo pautada muito mais por
fantasias e reminiscências de vivências de forte teor afetivo, do que pelo ato
de cópula propriamente dito e pelo orgasmo. Uma vez que a pulsão e o desejo
sexuais se realizam sempre, como acentua J.D. Nasio (1995), através de uma
fantasia, podemos, inclusive, ousar dizer que a sexualidade toma caráter “mais
psicanalítico” com a maturidade.
Um outro aspecto digno de
nota no filme é o grau de segurança e liberdade que possuem as personagens do
filme. Como aponta Altman (2011, p.194): “não existe ´a velhice´, mas
velhices”. Destarte, o modo como as personagens do filme vivem sua maturidade
não pode ser generalizado. Não obstante, a segurança e a liberdade às quais eu
me refiro indicam que, dentro de uma perspectiva da psicanalista Melanie Klein
(1991), os adultos maduros retratados no filme internalizaram a representação
do “objeto bom” e, em razão disso, passam maior parte do tempo convivendo com o
mundo de forma integrada, não enfrentando a insegurança imposta pela “angústia
de aniquilamento” gerada pela “ansiedade paranóica”. Essa liberdade permite,
inclusive, que as personagens do filme adotem comportamentos proibidos a
pessoas de outras faixas etárias, como quando Annie joga água em um visitante
indesejado e ela e seu marido Jean se rejubilam às gargalhadas em um prazer
típico do que Lacan (2008b) chamou de “gozo da transgressão”, que parece, por
razões variadas, como a maior flexibilidade às normas sociais e maior
permissibilidade aos desejos frente ao fato da proximidade da morte, fazendo
perder força as instituições e convenções sociais que limitam o prazer,
adquirir maior permissibilidade aos adultos maduros.
Se a o Princípio da Realidade
sempre se impõe ao Princípio do Prazer, como aponta Freud (1990; 2011), também
é verdade que esse evento gera, como ressaltou Freud em “O mal-estar na
cultura”, um sentimento nos indivíduos de “rejeição cultural” (FREUD, 2001;
LACAN, 2008b). As interdições que compõem a censura dos signos da realidade
impressos pelo “Eu” (FREUD, 1990) perdem o sentido extremamente severo e
constritivo que elas possuem em outras faixas etárias quando da idade madura e
a rebelação contra todos esses limites ao desejo e à liberdade de sua
realização se torna mais vivaz. Este, para mim, é ponto nodal da análise
psicanalítica do filme “E se vivêssemos todos juntos”.
*Henrique Breviglieri é graduado em psicologia pelo Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF), graduado em filosofia pelo Centro Universitário Claretiano - Batatais, SP, e pós-graduando em psicanálise clínica e institucional pelo Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF). É autor do livro "Introdução à História da Filosofia e aos primórdios da Psicologia Moderna" (Editora CRV: Curitiba, PR - previsão de publicação para outubro de 2020) e coordenador da Coleção "Filosofia e Grandes Eixos do Debate Filosófico" (Platô Editorial: Curitiba, PR, 2020-2021).
REFERÊNCIAS
ALTMAN, M. O envelhecimento
à luz da psicanálise. Jornal de Psicanálise 44 (80), p.193-206, São
Paulo – 2011.
FILHO, J.T.R.de.; SANTOS,
G.de.C. O desafio da clínica psicanalítica com idosos. Psic. Clin., vol.15,
n.2, p.45-55, Rio de Janeiro - 2003.
FREUD, S. (1950[1895]). Projeto para uma
psicologia científica. In: FREUD, S.
Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund
Freud. v. 1. Rio de
Janeiro: Imago, 1990, p. 385-529.
________. O mal-estar na civilização.
Tradução Paulo César de Souza. – 1ª ed. – São Paulo : Penguin Classics,
Companhia das Letras, 2011.
________. Seminário,
livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain
Miller; tradução M.D. MAGNO. – Rio de Janeiro : Zahar, 2008.
NASIO, J.-D. Introdução
às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. /
sob a direção de J.-D. Nasio, com as contribuições de A.-M. Arcangioli... [et
al.]; tradução, Vera Ribeiro; revisão, Marcos Comaru. – Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1995.
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