sexta-feira, 5 de junho de 2020

Análise psicanálitica do filme "E se vivêssemos todos juntos" - Psicanálise e Envelhecimento

Texto de Henrique Breviglieri*


Apesar de o fundador da psicanálise Sigmund Freud ter considerado que a idade do adulto maduro não seria recomendável e/ou viável ao processo psicanalítico, em razão da “pouca elasticidade mental” (FREUD 1905/1977 apud ALTMAN, 2011, p.195), além de uma diminuição da atividade sexual dos processos psíquicos primários e de uma possível dificuldade de simbolização (FILHO, SANTOS, 2007), os estudos psicanalíticos clássicos, como aqueles desenvolvidos por Abrahan (1919/1970 apud ALTMAN, 2011), e os contemporâneos, como os de Segal (1982 apud ALTMAN, 2011), demonstraram que, a despeito do que considerou Freud, o trabalho analítico com idosos pode ser profícuo, funcional e ampliativo no sentido de construção de ressignificações e de criação de novas narrativas para as vivências que o adulto maduro experenciou durante a sua vida e para ocorrências que despontam com maior iminência nesse período de vida, como os lutos, as perdas físicas e cognitivas, as limitações, as dependências e a morte.
Freud pode ter enxergado que o adulto maduro vive o que Lacan (2008a) chamou de “afânise”, ou seja, uma diminuição da atividade desejante e a perda de energia libidinal do desejo, afrouxando os processos psíquicos primários que, como sustentou Freud durante todo o desenvolvimento primeiro da psicanálise, são os processos motrizes de toda a vida psíquica do sujeito. Contudo, no filme “E se vivêssemos todos juntos” (2012), do início ao fim, há uma desconstrução dessa mentalidade de que o adulto maduro passa por uma diminuição da atividade psicossexual e vive pautado por regressões de libido. Todas as personagens do filme ainda mantêm uma sexualidade ativa, e a protagonista Jeanne sempre faz questão de ressaltar, durante os passeios com o etnólogo que passa a conviver com a comunidade de idosos amigos, Dirk, que a atividade sexual se mantém em mesma intensidade que na juventude, mas com contornos diferentes, sendo pautada muito mais por fantasias e reminiscências de vivências de forte teor afetivo, do que pelo ato de cópula propriamente dito e pelo orgasmo. Uma vez que a pulsão e o desejo sexuais se realizam sempre, como acentua J.D. Nasio (1995), através de uma fantasia, podemos, inclusive, ousar dizer que a sexualidade toma caráter “mais psicanalítico” com a maturidade.
Um outro aspecto digno de nota no filme é o grau de segurança e liberdade que possuem as personagens do filme. Como aponta Altman (2011, p.194): “não existe ´a velhice´, mas velhices”. Destarte, o modo como as personagens do filme vivem sua maturidade não pode ser generalizado. Não obstante, a segurança e a liberdade às quais eu me refiro indicam que, dentro de uma perspectiva da psicanalista Melanie Klein (1991), os adultos maduros retratados no filme internalizaram a representação do “objeto bom” e, em razão disso, passam maior parte do tempo convivendo com o mundo de forma integrada, não enfrentando a insegurança imposta pela “angústia de aniquilamento” gerada pela “ansiedade paranóica”. Essa liberdade permite, inclusive, que as personagens do filme adotem comportamentos proibidos a pessoas de outras faixas etárias, como quando Annie joga água em um visitante indesejado e ela e seu marido Jean se rejubilam às gargalhadas em um prazer típico do que Lacan (2008b) chamou de “gozo da transgressão”, que parece, por razões variadas, como a maior flexibilidade às normas sociais e maior permissibilidade aos desejos frente ao fato da proximidade da morte, fazendo perder força as instituições e convenções sociais que limitam o prazer, adquirir maior permissibilidade aos adultos maduros.
Se a o Princípio da Realidade sempre se impõe ao Princípio do Prazer, como aponta Freud (1990; 2011), também é verdade que esse evento gera, como ressaltou Freud em “O mal-estar na cultura”, um sentimento nos indivíduos de “rejeição cultural” (FREUD, 2001; LACAN, 2008b). As interdições que compõem a censura dos signos da realidade impressos pelo “Eu” (FREUD, 1990) perdem o sentido extremamente severo e constritivo que elas possuem em outras faixas etárias quando da idade madura e a rebelação contra todos esses limites ao desejo e à liberdade de sua realização se torna mais vivaz. Este, para mim, é ponto nodal da análise psicanalítica do filme “E se vivêssemos todos juntos”. 

*Henrique Breviglieri é graduado em psicologia pelo Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF), graduado em filosofia pelo Centro Universitário Claretiano - Batatais, SP, e pós-graduando em psicanálise clínica e institucional pelo Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF). É autor do livro "Introdução à História da Filosofia e aos primórdios da Psicologia Moderna" (Editora CRV: Curitiba, PR - previsão de publicação para outubro de 2020) e coordenador da Coleção "Filosofia e Grandes Eixos do Debate Filosófico" (Platô Editorial: Curitiba, PR, 2020-2021).
 
REFERÊNCIAS
ALTMAN, M. O envelhecimento à luz da psicanálise. Jornal de Psicanálise 44 (80), p.193-206, São Paulo – 2011.
FILHO, J.T.R.de.; SANTOS, G.de.C. O desafio da clínica psicanalítica com idosos. Psic. Clin., vol.15, n.2, p.45-55, Rio de Janeiro - 2003.
FREUD, S. (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: FREUD, S.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 385-529.

________. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. – 1ª ed. – São Paulo : Penguin Classics, Companhia das Letras, 2011.



________. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução M.D. MAGNO. – Rio de Janeiro : Zahar, 2008.

NASIO, J.-D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. / sob a direção de J.-D. Nasio, com as contribuições de A.-M. Arcangioli... [et al.]; tradução, Vera Ribeiro; revisão, Marcos Comaru. – Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1995.

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