sábado, 27 de junho de 2020

Nietzche, um filósofo pop

Comumente os filósofos são famosos por serem antiquados e avessos à popularidade, certamente não é o que acontece com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900).
Embora durante a sua vida o filósofo não fosse reconhecido como um grande expoente da filosofia, após a sua morte ganhou grande destaque, cabe neste momento fazer um destaque, comumente Nietzsche é relacionado ao nazismo, tal relação é um equívoco, pois em vida o filósofo combateu o antissemitismo, infelizmente a sua irmã  Elisabeth Förster-Nietzsche (1846-1935) contribui para a deturpação de suas obras, tal deturpação fica claro no livro A Vontade de Poder.
Mas o que leva ao filósofo alemão ser tão influente? Lido e relido nos cursos de filosofia, lido por estudantes secundaristas, ser abordado em longas-metragens ( Dias de Nietzsche em Turim, de 2001; O dia que Nietzsche chorou, de 2007), animações como BoJack Horseman (2014-2020); Love, Death & Robots (2018-) e Rick and Morty (2013-), também é possível diagnosticar a sua influencia na literatura, mais especificamente, na literatura de horror cósmico, como nas obras de H.P. Lovecraft (1890-1937), além disso, ter influenciado músicos como Belchior (1946-2017) e Legião Urbana?
Uma resposta plausível para tal questão é a subversão proposta por Nietzsche. Nietzsche inicia a sua carreira como filósofo rompendo com a academia, mas principalmente rompendo com a filosofia grega, Nietzsche também é conhecido por ter dito frases impactantes como "Deus esta morto"; "E o homem, em seu orgulho, criou Deus à sua imagem e semelhança."; "Eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar." A partir destas sentenças podemos ver que Nietzsche é um filósofo do incomodo, sentenças como essas também contribuíram para que o filósofo fosse mal compreendido por seus contemporâneos e leitores, deste modo gerando a futilidade. O pensador alemão também é notoriamente reconhecido pela a sua sagacidade na escrita, isto é, Nietzsche escreve os seus textos nas mais diversas formas, sendo o aforismo o seu estilo mais conhecido dentre elas.
Mesmo assim, é legitimo afirmar que a popularidade do bigodudo é justamente devido o incomodo provocado por ele, assim como a sua rebeldia/genialidade, deste modo, contribuindo para a disseminação de sua filosofia, consequentemente o leitor terá contato com os demais filósofos, deste modo, o leitor acaba se aventurando nos mares intempestivos da filosofia.


Para assistir:


Para ler:

João Evangelista Tude de Melo Neto. 10 lições sobre Nietzsche.
Roberto Machado. Nietzsche e a Verdade.
Scarlett Marton. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos.
Scarlett Marton. Nietzsche, filósofo da suspeita.
Vinicius de Figueiredo. Filósofos na Sala de Aula, vol. 02.

Para ouvir:

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Superman: justiça, verdade e liberdade

Kal-El, o último kryptoniano vivo, erradicado no Planeta Terra e criado pelos Kents em Smallville, uma cidade do interior no Kansas, na sua adolescência o jovem Clark Kent (Kal-El) descobre que não é humano, além disso, possui habilidades sobre-humanas como superforça, supervelocidade, visão de raio x e visão de calor.
Mesmo com tais habilidades o jovem Clark Kent decide usar as suas habilidades em prol da humanidade, isto é, de fazer o bem para as pessoas, deste modo, tornando-se o Superman. Mas o que leva um ser tão poderoso, em algumas ocasiões sendo até considerado como um deus, proteger a humanidade?
Em diversas ocasiões o filho de Krypton também é chamado como o guardião da justiça, verdade e liberdade. Qual é o entendimento do Superman sobre estes conceitos? Quais os desdobramentos destes conceitos a partir das ações tomadas pelo herói para a humanidade?
Desde a antiguidade filósofos como Platão e Aristóteles investigam esses conceitos (justiça, verdade e liberdade) e quais são os impactos destes conceitos na vida cotidiana de uma determinada sociedade. Uma das mais importantes obras de Platão, A República, o personagem Sócrates debate com os seus interlocutores o que é a justiça e quais são os seus desdobramentos. Aristóteles também dedica a sua reflexão sobre estes conceitos.
No Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagno é possível encontrar os verbetes destes conceitos*. 

Justiça: Em geral, a ordem das relações humanas ou as conduções de quem se ajusta a essa ordem. Podem -se distinguir dois significados principais: 1)Justiça como conformidade da conduta a uma norma , 2) como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. 
Liberdade: 1) Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é a ausência de condições e limites. 2) liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente,a auto determinação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substancia, Estado); 3) liberdade como possibilidade de escolha, segundo a qual liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. Não constituem conceitos diferentes as formas que a liberdade assume nos vários campos, como por exemplo liberdade metafísica, liberdade moral, liberdade política, liberdade econômica e etc. A disputas metafísicas, morais políticas, econômicas, etc, em torno da liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam.
Verdade: Validade ou eficácia dos processos cognoscitivos. Em geral, entende-se por verdade a qualidade em virtude da qual um processo cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode ser aplicada tanto às concepções segundo as quais o conhecimento é um processo mental quanto às que consideram um processo linguístico ou semiótico.
Ainda sobre a justiça, na República, Trasímaco (personagem da obra de Platão), define para Sócrates o conceito de justiça como instrumento do mais forte, isto é, o mais forte pode faz o que bem entender em nome da justiça. Partindo deste pressuposto, sabemos que Superman é o ser mais forte do planeta, mesmo assim, notamos que o kryptoniano não usa a sua força para o seu bel prazer, ao contrário, Superman usa os seus poderes em prol da humanidade, deste modo transformando-o em um altruísta.
Ao tomar combate ao crime e proteger os fracos e oprimidos, Superman intensifica cada vez mas como representante da justiça, verdade e liberdade . Mas tendo o Superman como guardião da humanidade, seria a humanidade de fato livres? Partindo da perspectiva do seu principal antagonista, Lex Luthor, não. Pois, ao aceitar Superman como protetor da Terra, a humanidade não atingira o seu potencial, deste modo, cabe a Lex a superar Superman. Ainda sobre a liberdade, é legitimo afirmar que Superman também pode ser manipulado para fins políticos, isto é, por parte do governo estadunidense, Superman pode ser usado como arma contra as demais nações, deste modo a liberdade mundial é posto em cheque**.
Superman é tido como um dos heróis mais íntegros dos quadrinhos, é possível validar tal afirmativa? Por muito tempo Superman escondeu a sua identidade de Lois Lane, isto é, por muito tempo, Clark Kent excitou em revelar a sua identidade secreta para a jornalista, mesmo sendo esta a sua paixão. Mesmo assim o personagem é tido como virtuoso, pois mesmo sendo uma alienígena, o último de sua raça e sendo superior a humanidade, Superman escolhe proteger o humanidade.
Deste modo, concluímos que Superman, o íconico personagem das HQs e da cultura pop não é um mero personagem que possui inúmeras aventuras para entreter o consumidor, o personagem também pode ser interpretado como um personagem que instiga quem tem contato com ele, pois molda a moralidade e trás a esperança para a humanidade.

*Devido a falta de espaço serão expressos apenas fragmentos destes verbetes (justiça, verdade e liberdade), também é possível encontrar os mesmos verbetes em outros dicionários como o Dicionário de Política, de Norberto Bobbio e Dicionário Oxford de filosofia, do Simon Blackburn.

Para assistir:

O Homem de Aço, 2013.
Superman O Filme, 1978.

Para  ler:

Alan Moore e Curt Swan. Superman: O que aconteceu com o homem de aço?
Aristóteles. Política.
Willian Irwin (org.). Superman e a filosofia.

domingo, 21 de junho de 2020

Filosophiczine

Fanzine produzido pelos alunos do Colégio Estadual Antônio de Castro Alves de Alvorada - Rio Grande do Sul. Sob a orientação do Professor Denilson Reis. Boa leitura...

Filosophiczine 01

sábado, 20 de junho de 2020

Matrix e o budismo

Agradeço aos amigxs que motivaram a escrever este texto, Alonso e Tawana Tábata.

Matrix não é apenas um filme de ação/ficção científica ou um filme que convida o espectador a refletir sobre a existência da humanidade, Matrix também é influenciado pela filosofia mística do Oriente, o mais explicito desta vertente é o budismo. Mas como se dá essa estranha relação, um filme de ação e o budismo? Quais são as influencias desta filosofia no longa?
O que é real? Desde a antiguidade essa pergunta permanece em aberta, filósofos como Platão, René Descartes e Jean Baudrillard dedicaram-se a essa questão.
No entanto, não foram apenas os filósofos ocidentais que debruçaram-se sobre tal questões, no Oriente, as escolas filosóficas do Oriente também debruçaram-se sobre o real. Neste momento, apresentaremos como a questão do real é importante para a filosofia budista.
Porém antes de adentrarmos no tema central do texto presente, é relevante fazer uma breve apresentação do filme, também cabe mencionar que no texto presente será abordado apenas o primeiro filme da trilogia.
Matrix é ambientado em uma metrópole qualquer, nela somos apresentados ao jovem programador de computador de uma famosa e respeitável empresa de software Thomas Anderson, entretanto, o jovem programador possui uma vida dupla, fora do trabalho, Anderson é o hacker Neo. E é justamente a partir das suas atividades como hacker que Anderson/Neo começa a questionar a sua existência, ou seja, o personagem não consegue distinguir o real do não real, isto é, estaria Anderson/Neo vivendo em um sonho, mais especificamente uma simulação virtual?
Com o auxilio dos personagens Morpheus e Trinity, Anderson descobre que está sendo enganado, isto é, Anderson está vivendo uma simulação criada pela inteligência artificial Matrix. A partir desta descoberta, Neo tem como objetivo, através da jornada do herói, salvar a humanidade do estado alienante que se encontram. Deste modo, é possível interpretar o filme Matrix como uma alusão a jornada do indivíduo a emancipação.De algum modo é possível buscar essa emancipação a partir da filosofia proposta pelo budismo.
Ao longo da narrativa do longa existem inúmeras alusões ao pensamento místico, porém há uma cena que é uma clara alusão ao budismo, é a icônica cena do Neo com o  "garoto":
Garoto: Não tente entortar a colher. Isto é impossível. Ao invés disto tente perceber a verdade.
Neo: Que Verdade?
Garoto: Não há colher.
A filosofia budista, ou melhor, a metafísica budista também propõem o dualismo. Segundo o budismo, o mundo em que vivemos é uma ilusão e apenas através da "iluminação" que o indivíduo irá atingir o estado do nirvana.
O conceito de nirvana pode ser compreendido como a superação dos sentidos e a ausência do sofrimento, ou seja,  ao atingir o nirvana o indivíduo compreenderá a realidade em sua totalidade, o que importa não é a felicidade ou prazeres materiais, mais sim a paz interior.
Deste modo, podemos chegar a conclusão que diferentemente das filosofias ocidentais, que preza a razão, o budismo não esta preocupado com a razão, mas sim com o bem estar, ou seja, a filosofia budista induz o indivíduo ao encontro de si mesmo, isto é, um olhar para dentro, deste modo o indivíduo compreendera a essência da vida
De algum modo, Matrix pode ser interpretado como uma metáfora a filosofia budista, pois como a cena/diálogo entre o "garoto" e Neo retrata como a "realidade" em que vivemos não passa de uma ilusão e apenas com o "despertar" que a vida começará a fazer algum sentido...

Para Assistir:

Matrix, 1999.
Matrix Reload, 2003.
Matrix Revolutions, 2003.

Para ler:

sábado, 6 de junho de 2020

Vivemos uma realidade distópica?

De algum modo desde os eventos da Revolução Industrial, há indícios que a humanidade estar construindo uma nova realidade, a realidade distópica. Os indícios tornam-se mais claros ainda após o advento da I e II Guerra Mundial e o surgimento da bomba nuclear. Porém, para compreender minimamente o conceito de distopia é interessante apresentar outro conceito, o conceito de utopia.
Platão, em A República, apresenta e desenvolve em conjunto de seus interlocutores a idealização de uma cidade perfeita, ou seja, desde Platão e posteriormente a Platão  ideia de utopia já era discutida. Entretanto, é com o filósofo inglês Thomas More que o conceito de utopia ganha destaque, após as considerações de More sobre utopia há um consenso a respeito, consenso esse que é possível encontrar no debate contemporâneo.  Em 1516, é publicado o livro de More, Utopia, nele o pensador apresenta ao leitor uma ilha, onde habita uma sociedade perfeita, também é apresentado o cotidiano desta sociedade perfeita, a partir disso, More destaca a repercussão/consequência sobre a concretização de uma sociedade utópica. 
A parir destas colocações, conclui-se que utopia é um exercício mental, ou seja, a utopia é a idealização de uma sociedade/estilo de vida perfeita, consequentemente, é harmoniosa, deste modo, concluímos que o conceito de utopia esta diretamente relacionado ao pensamento político.
Já a definição de distopia é o inverso de utopia, ou seja, a distopia é a utopia que deu errado. Também é oportuno afirmar que a distopia está diretamente ligado aos avanços tecnológicos e os impactos da tecnologia na vida cotidiana, impactos esses que repercute na política. Além disso a distopia aborda a relação homem, máquina e o planeta Terra*. 
Uma realidade distópica pode ser caracterizada da seguinte maneira: regime governamental autoritário, avanço tecnológico exacerbado (chegando a um ponto de não haver uma distinção entre o real e virtual) e a depredação  do meio ambiente e etc. A partir dos pontos destacados sobre uma realidade distópica, chegamos a seguinte questão: a ficção tornou-se realidade? 
Tomando como ponto de partida os eventos da II Guerra Mundial e os eventos da Guerra Fria é legitimo afirmar que a humanidade esta se encaminhando para a concretização de uma realidade distópica e não existe meios que possam reverter tal cenário, talvez o mais próximo que a humanidade possa fazer é adiar a concretização desta realidade.
Para a realidade distópica tornar-se efetiva é necessário estabelecer relações efetivas com o aceleracionismo.
Ou seja, ao aceitar e continuar a viver um estilo de vida proporcionado pelo capitalismo, cabe a humanidade dois caminhos, I) Adiar o máximo que puder a catástrofe que esta por vir, embora, esteja apenas adiando o "fim"; II) Aceitar a catástrofe, ou seja, efetivar o aceleracionismo do capital, causando a própria extinção da humanidade.
A ficção distópica está próximo de tornar realidade cabe a humanidade (civilização ocidental) escolher como lidar com ela...



Para assistir (filmes):

Bacurau, 2019.
Blade Runner, 1982.
Brazil, 1985.
Dredd, 2012.
Ensaio sobre a Cegueira, 2008.
Expresso do Amanhã, 2013.
Filhos da Esperança, 2006.
Laranja Mecanica, 1971.
Mad Max: Estrada da Fúria, 2015.
Metrópolis, 1927.
Minority Report, 2005.
Planeta dos Macacos, 1968.

Para assistir (vídeos):


Para ler:

Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo.
Anthony Burgess. Laranja Mecanica.
George Orwell. 1984.
George Orwell. A Revolução dos Bichos.
Kazuo Ishiguro. Não me Abandone Jamais.
Margaret Atwood. O Conto de Aia.
Philip K. Dick. O Homem do Castelo Alto
Ray Bradbury. Fahrenheit 451.
Yevgeny Zamyatin. Noz.
Warren Ellis & Darick Robertson. Transmetropolitan.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Análise psicanálitica do filme "E se vivêssemos todos juntos" - Psicanálise e Envelhecimento

Texto de Henrique Breviglieri*


Apesar de o fundador da psicanálise Sigmund Freud ter considerado que a idade do adulto maduro não seria recomendável e/ou viável ao processo psicanalítico, em razão da “pouca elasticidade mental” (FREUD 1905/1977 apud ALTMAN, 2011, p.195), além de uma diminuição da atividade sexual dos processos psíquicos primários e de uma possível dificuldade de simbolização (FILHO, SANTOS, 2007), os estudos psicanalíticos clássicos, como aqueles desenvolvidos por Abrahan (1919/1970 apud ALTMAN, 2011), e os contemporâneos, como os de Segal (1982 apud ALTMAN, 2011), demonstraram que, a despeito do que considerou Freud, o trabalho analítico com idosos pode ser profícuo, funcional e ampliativo no sentido de construção de ressignificações e de criação de novas narrativas para as vivências que o adulto maduro experenciou durante a sua vida e para ocorrências que despontam com maior iminência nesse período de vida, como os lutos, as perdas físicas e cognitivas, as limitações, as dependências e a morte.
Freud pode ter enxergado que o adulto maduro vive o que Lacan (2008a) chamou de “afânise”, ou seja, uma diminuição da atividade desejante e a perda de energia libidinal do desejo, afrouxando os processos psíquicos primários que, como sustentou Freud durante todo o desenvolvimento primeiro da psicanálise, são os processos motrizes de toda a vida psíquica do sujeito. Contudo, no filme “E se vivêssemos todos juntos” (2012), do início ao fim, há uma desconstrução dessa mentalidade de que o adulto maduro passa por uma diminuição da atividade psicossexual e vive pautado por regressões de libido. Todas as personagens do filme ainda mantêm uma sexualidade ativa, e a protagonista Jeanne sempre faz questão de ressaltar, durante os passeios com o etnólogo que passa a conviver com a comunidade de idosos amigos, Dirk, que a atividade sexual se mantém em mesma intensidade que na juventude, mas com contornos diferentes, sendo pautada muito mais por fantasias e reminiscências de vivências de forte teor afetivo, do que pelo ato de cópula propriamente dito e pelo orgasmo. Uma vez que a pulsão e o desejo sexuais se realizam sempre, como acentua J.D. Nasio (1995), através de uma fantasia, podemos, inclusive, ousar dizer que a sexualidade toma caráter “mais psicanalítico” com a maturidade.
Um outro aspecto digno de nota no filme é o grau de segurança e liberdade que possuem as personagens do filme. Como aponta Altman (2011, p.194): “não existe ´a velhice´, mas velhices”. Destarte, o modo como as personagens do filme vivem sua maturidade não pode ser generalizado. Não obstante, a segurança e a liberdade às quais eu me refiro indicam que, dentro de uma perspectiva da psicanalista Melanie Klein (1991), os adultos maduros retratados no filme internalizaram a representação do “objeto bom” e, em razão disso, passam maior parte do tempo convivendo com o mundo de forma integrada, não enfrentando a insegurança imposta pela “angústia de aniquilamento” gerada pela “ansiedade paranóica”. Essa liberdade permite, inclusive, que as personagens do filme adotem comportamentos proibidos a pessoas de outras faixas etárias, como quando Annie joga água em um visitante indesejado e ela e seu marido Jean se rejubilam às gargalhadas em um prazer típico do que Lacan (2008b) chamou de “gozo da transgressão”, que parece, por razões variadas, como a maior flexibilidade às normas sociais e maior permissibilidade aos desejos frente ao fato da proximidade da morte, fazendo perder força as instituições e convenções sociais que limitam o prazer, adquirir maior permissibilidade aos adultos maduros.
Se a o Princípio da Realidade sempre se impõe ao Princípio do Prazer, como aponta Freud (1990; 2011), também é verdade que esse evento gera, como ressaltou Freud em “O mal-estar na cultura”, um sentimento nos indivíduos de “rejeição cultural” (FREUD, 2001; LACAN, 2008b). As interdições que compõem a censura dos signos da realidade impressos pelo “Eu” (FREUD, 1990) perdem o sentido extremamente severo e constritivo que elas possuem em outras faixas etárias quando da idade madura e a rebelação contra todos esses limites ao desejo e à liberdade de sua realização se torna mais vivaz. Este, para mim, é ponto nodal da análise psicanalítica do filme “E se vivêssemos todos juntos”. 

*Henrique Breviglieri é graduado em psicologia pelo Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF), graduado em filosofia pelo Centro Universitário Claretiano - Batatais, SP, e pós-graduando em psicanálise clínica e institucional pelo Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF). É autor do livro "Introdução à História da Filosofia e aos primórdios da Psicologia Moderna" (Editora CRV: Curitiba, PR - previsão de publicação para outubro de 2020) e coordenador da Coleção "Filosofia e Grandes Eixos do Debate Filosófico" (Platô Editorial: Curitiba, PR, 2020-2021).
 
REFERÊNCIAS
ALTMAN, M. O envelhecimento à luz da psicanálise. Jornal de Psicanálise 44 (80), p.193-206, São Paulo – 2011.
FILHO, J.T.R.de.; SANTOS, G.de.C. O desafio da clínica psicanalítica com idosos. Psic. Clin., vol.15, n.2, p.45-55, Rio de Janeiro - 2003.
FREUD, S. (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: FREUD, S.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 385-529.

________. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. – 1ª ed. – São Paulo : Penguin Classics, Companhia das Letras, 2011.



________. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução M.D. MAGNO. – Rio de Janeiro : Zahar, 2008.

NASIO, J.-D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. / sob a direção de J.-D. Nasio, com as contribuições de A.-M. Arcangioli... [et al.]; tradução, Vera Ribeiro; revisão, Marcos Comaru. – Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1995.