Esse "ensaio" é uma tentativa de amadurecimento de algumas reflexões sobre o tema*, sobretudo, a partir da leitura da dissertação de mestrado em direito e de algumas conversas com a colega Tailine Hijaz (UFPR), agradeço pela conversa instigante e a paciência.
Para Tawana Tábata
Um dos pilares centrais da democracia é a tal da liberdade de expressão, mas o que é a liberdade de expressão? Todo tipo de opinião deve ser tolerada no debate/espaço público? Quais são as suas implicações? Para darmos continuidade na reflexão gostaríamos de apresentar algumas definições. Eis um trecho do verbete "democracia" no Dicionário de política, organizada por Norberto Bobbio (1909-2004) e Nicola Matteucci (1926-2006).
"Na teoria política contemporânea, mais em prevalência nos países de tradição democrático-liberal, as definições de Democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou, como também se diz, de "procedimentos universais". Entre estas: 1) o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau; 2) junto do supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7) tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre; 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo.
A partir deste trecho, percebemos que a democracia contemporânea é herdeira de alguns ideais do passado, tais como os Federalistas e Immanuel Kant (1724-1804)**. Também é possível concluir que temos sobre a democracia está intrinsecamente relacionado a um tipo de liberalismo***, deste modo podemos fazer a seguinte pergunta: será que este ideal de democracia ainda é válida para a contemporaneidade?
Se fizermos uma brevíssima digressão na história contemporânea, mais especificamente para a primeira década de 2000, percebemos que há certos eventos e certos artefatos técnicos que serão fundamentais para compreendermos certos fenômenos da política contemporânea, p. ex. a ascensão de uma extrema-direita através das redes virtuais.
Ao contrário do otimismo sobre como as redes (a internet) seria fundamental para a consolidação da democracia contemporânea, tal como Pierre Lévy expressou em alguns momentos. A internet alterou a maneira que interagimos com a realidade, houve grande repercussão no campo da comunicação, da informação e no próprio modo em que estávamos habituados em compreender o jogo da política.
Neste momento, chamamos a atenção para um certo fenômeno que ocorrem nas redes, mais especificamente nas plataformas de comunicação, são os podcasts/mesacasts.
Nos últimos anos é possível diagnosticar a efervescência dos podcasts em plataformas como o YouTube, canais como Flow Podcast (2018-), Inteligência Ltda (2020), Lex Fridman Podcast (2018-) e The Joe Rogan Expirience (2009-) podem ser tidas como veículos de grande impacto na sociedade contemporânea.
O que esses canais possuem em comum? A "premissa" de divulgar as mais diversas (e controversas) opiniões sobre os mais diversos temas, talvez possamos entender este movimento como uma ampliação do debate público, ou seja, segundo, as personalidades que apresentam estes espaços advogam e militam pela famosa liberdade de expressão. Mas o que é liberdade de expressão?
Segundo o lexionário (Diário da república, lexionário, verbete "liberdade de expressão"):
A liberdade de expressão é um direito fundamental de liberdade que consiste na faculdade de todos os cidadãos poderem exprimir e divulgar livremente, sem impedimentos e discriminações, o seu pensamento, ou seja, as suas ideias, convicções, pontos de vista, críticas ou valorações pela palavra, imagem, pelo som ou por qualquer outro meio.
Através desta definição, é possível afirmar que a tal proposição está alinhada com os ideais da democracia contemporânea, mas retomamos a seguinte questão: toda enunciação deve ser aceita como liberdade de expressão, portanto, legítima de ser compartilhada com os demais grupos sociais, não importando as suas implicações?
No Brasil, este debate vem sendo debatido desde, pelo menos, as manifestações de 2013, de forma mais intensa ainda, nas últimas eleições presidenciais. Não seria o caso de haver algumas restrições normativas? Ou uma delimitação do que deveria ser considerado como liberdade de expressão?
Uma possibilidade de haver uma contenção sobre o que deve ou não ser considerado como liberdade de expressão é através da noção de responsabilidade. Retomamos para a definição deste verbete segundo o Dicionário de filosofia Nicola Abbagnano****.
(...) O termo "responsabilidade" e seu conceito são recentes: aparecem pela primeira vez em inglês e em francês em 1787 (...) O primeiro significado do termo foi político, em expressões como "governo responsável" ou "responsabilidade do governo", indicativas do caráter do governo constitucional que age sob controle dos cidadãos e em função desse controle. Em filosofia, o termo foi usado nas controvérsias sobre a liberdade e acabou sendo útil principalmente aos empiristas ingleses, que quiseram mostrar a incompatibilidade juízo moral com a liberdade e a necessidade absolutas (cf. HUME, Inq. Cone. Underst., VIII; STUART MILL, nota a Analysis of the Phenomena of the Human Mind, de J. MILL, 1869, II, p. 325). Na verdade, a noção de "responsabilidade" baseia-se na escolha, e a noção de escolha é essencial ao conceito de liberdade limitada. (...) Portanto, o conceito de "responsabilidade" inscreve-se em determinado conceito de liberdade, e mesmo na linguagem comum chamase alguém de "responsável" ou elogia-se seu "senso de responsabilidade." quando se pretende dizer que a pessoa em questão inclui nos motivos de seu comportamento a previsão dos possíveis efeitos dele decorrentes.Desta maneira, torna-se claro que a noção de liberdade (liberdade de expressão) está intrinsecamente relacionado a noção de responsabilidade. Embora, que em um primeiro momento, essa discussão sobre a necessidade ou responsabilização sobre a liberdade de expressão seja paradoxal, é através desta dicotomia que ocorre a manutenção de uma democracia (ou pelo menos deveria ocorrer)...
*Este "ensaio" deve ser compreendido como um complemento/aprofundamento de um texto anterior: Leonardo Gomes. Democracia jabutiba e o paradoxo da tolerância.
** Sugerimos a leitura de Os federalistas (Col. Os pensadores) e Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? de Kant.
***Liberalismo clássico, não confundir com neoliberalismo, para uma introdução ao liberalismo sugerimos a exposição introdutória da filósofa brasileira Cristina Foroni, O que é o liberalismo? e do filósofo Eduardo Wolf, Uma história das ideias liberais.
**** Preferimos esta definição do que a definição proposta e desenvolvida pelo filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993), embora reconheçamos que há uma contribuição no campo do direito e da bioética, considero como insuficiente, pelo seguinte motivo: a sua crítica ao imperativo categórico de Kant é insuficiente, além de carregar uma herança heideggeriana (fenomenológica), sobre este tópico sugerimos a leitura de Michelle Bobsin. A crítica de Hans Jonas à ética kantiana.
Para assistir:
Para ler:
Karl Popper. A sociedade aberta e seus inimigos, v. 1-2.
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