sábado, 19 de dezembro de 2020

Matrix: uma introdução a filosofia

 O que é real? Como você define "real"?
                                                   Morpheus*

Certamente a trilogia Matrix** (1999 - 2003), dirigido pelas irmãs Wachowski inovou o cinema, sobretudo, os efeitos especiais. 
No presente texto daremos destaque ao primeiro filme da trilogia, Matrix (1999). Matrix é um filme que se enquadra no gênero de ficção científica, entretanto, o longa não apenas um filme de entretenimento, o longa possui, nuances, isto é, possui crítica social e metáforas de natureza religiosa/mística e filosófica, daremos destaque a este segundo tópico.
Como mencionado anteriormente, o longa convida o espectador a refletir sobre a natureza da realidade, isto é, através de uma linguagem mais contemporânea e adaptada para uma linguagem cinematográfica, as irmãs Wachowski fazem a seguinte indagação: e se vivêssemos em uma simulação artificial? Também podemos reformular a questão principal do longa: o que é real? 
A indagação sobre a realidade não é uma indagação original, desde a antiguidade até a contemporaneidade os filósofos se debruçam sobre essa pergunta. Filósofos como Platão  (427 a.C. - 347 a.C.) e René Descartes (1596 - 1650) são um dos principais filósofos que refletiram sobre a realidade.
“[...] Matrix parece explicitar diálogos com correntes contemporâneas de pensamento e mesmo com cânones da filosofia, como Platão e Descartes” (OLIVEIRA, 2011, p. 67).  
Aproveitando a natureza reflexiva do longa metragem, isto é, tomando como ponto de partida a reflexão sobre o real, apresentaremos como os filósofos Platão e René Descartes lidaram com a realidade.  
 
 Matrix

Matrix parece se oferecer como algo mais que um espetáculo de ação típico, ao aparentemente explicitar um diálogo entre sua trama e conceitos pertencentes a correntes filosóficas contemporâneas e clássicas.

                                                                                                                                    Adriano Oliveira***
 
 Antes de adentrarmos a proposta central deste tópico, é importante apresentar de maneira breve, além disso, contextualizar a obra cinematográfica, isto é, qual a repercussão do filme para a indústria cinematográfica, mais especificamente para o gênero cinematográfico a qual pertence.
 

The Matrix (1999) é, sob diversos aspectos, um fenômeno da indústria do entretenimento. Sucesso de público e crítica, o filme escrito e dirigido pelos irmãos Andy e Larry Wachowski, renovou o gênero da ficção científica, mesclando elementos aparentemente tão dispares como literatura fantástica, realidade virtual, artes marciais e referências à filosofia pós-moderna (OLIVEIRA, 2011, p. 61).

 O longa-metragem pertence ao gênero da ficção científica, além disso, o longa também pertence a outro subgênero da ficção científica: o cyberpunk.
O termo cyberpunk ganha notoriedade a partir da década dos anos 1980. No ano de 1983 lançado pela revista estadunidense de ficção científica Amazing Stories o conto Cyberpunk, escrito por Bruce Bethke, Bethke é o primeiro a usar o termo cyberpunk na literatura de ficção científica, outro escritor, também estadunidense que contribuirá para a consolidação da literatura cyberpunk é William Gibson, com o primeiro livro da trilogia Neuromancer (1984), mesmo sendo anterior a Bethke, a obra de Philip K. Dick, Androides Sonham com Ovelhas Elétrica? (1968) também pertence ao gênero cyberpunk, sendo este considerado a primeira obra cyberpunk mesmo o termo não existindo na época de sua publicação. Inspirado pela relação cibernética e cibercultura, é possível tomar o cyberpunk como mais uma analogia da relação entre homem e máquina.
De maneira geral, podemos afirmar que a realidade cyberpunk se passa em um futuro onde não existem humanos no sentido estrito da palavra, a realidade cyberpunk é composto por tecnologia avançada, seres híbridos (humanos como partes robóticas), androides ou até mesmo alienígenas. Também cabe mencionar que os eventos que se passam no universo do cyberpunk é na realidade virtual, deste modo, torna-se dificultoso distinguir a realidade da realidade virtual, além disso, o gênero cyberpunk enfatiza a questão sobre a liberdade. Mesmo a humanidade tendo aperfeiçoado a tecnologia, a humanidade tornou-se livre ou escravo do avanço científico/tecnológico? Tal questão fica claro quando percebemos que o gênero cyberpunk parte do seguinte pressuposto: “alta tecnologia e baixa qualidade de vida.”
As influencias do cyberpunk em Matrix são óbvias, desde a ambientação do filme, até o figurino usado pelos personagens. Quando os tripulantes da Nabucodonosor (nave de Morpheus) vão para a matrix, os personagens usam Mirrorshades, roupas escuras e óculos escuros espelhados. Uma clara alusão a obra de Gibson, Neuromancer.
 

[...] Gibson estabelece toda uma problemática e estética (seus personagens foram chamados de Mirrorshades porque usavam um figurino de jaquetas de couro pretas e óculos escuros espelhados) para uma geração de escritores. A estória sobre a paranóia de um hacker frente ao poder das megacorporações que aprisionam os indivíduos é a principal narrativa de Neuromancer e, também está presente em Matrix [...] (AMARAL, 2003, p. 02).   

Matrix é ambientada em 1999, virada do milênio, nela somos apresentado ao jovem programador de computador Thomas Anderson, por algum motivo desconhecido, Anderson começa a questionar os eventos que se passam ao seu redor, ou seja, Anderson não consegue distinguir a realidade da fantasia, isto é, de seus sonhos. A partir desta inquietação sobre a realidade, Anderson começa a se perguntar sobre a matrix: o que é a matrix? Com a interação e auxílio dos demais personagens da trama Anderson toma conhecimento da aterradora situação que a humanidade se encontra. 
Em um futuro próximo, Thomas Anderson, um jovem programador de computador que mora em um cubículo escuro, é atormentado por estranhos pesadelos nos quais encontra-se conectado por cabos e contra sua vontade, em um imenso sistema de computadores do futuro. Em todas essas ocasiões, acorda gritando no exato momento em que os eletrodos estão para penetrar em seu cérebro. À medida que o sonho se repete, Anderson começa a ter dúvidas sobre a realidade. Por meio do encontro com os misteriosos Morpheus e Trinity, Thomas descobre que é, assim como outras pessoas, vítima do Matrix, um sistema inteligente e artificial que manipula a mente das pessoas, criando a ilusão de um mundo real enquanto usa os cérebros e corpos dos indivíduos para produzir energia****

Ao tomar conhecimento sobre a matrix, isto é, a matrix é uma programação de simulação, cujo objetivo é manter os humanos em estado de coma para que as máquinas possam consumir a energia produzido pelos corpos humanos, Neo, através das orientações de Morpheus e com a ajuda de Trinity inicia a sua jornada do herói com a finalidade de libertar a humanidade da simulação criada pela matrix.

Alegoria da caverna 2.0

Ao encontrar-se com o misterioso Morpheus, Neo é questionado por Morpheus:
 

Morpheus: Você acredita em destino, Neo?

Neo: Não.

Morpheus: Por que não?

Neo: Não gosto de pensar que não controlo a minha vida.

Morpheus: Sei exatamente o que quer dizer. Vou te dizer por que está aqui. Você sabe de algo.  Não sabe explicar o quê. Mas você sente. Você sentiu a vida inteira: há algo errado no mundo. Você não sabe, mas há. Como um zunido na sua cabeça... te enlouquecendo. Foi esse sentimento que te trouxe até mim. Você sabe do que estou falando?

Neo: Da Matrix?

Morpheus: Você deseja saber... o que ela é? A Matrix está em todo lugar. À nossa volta. Mesmo agora, nesta sala. Você pode vê-la quando olha pela janela... ou quando liga sua televisão. Você a sente quando vai para o trabalho... quando vai à igreja... quando paga seus impostos. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade.  

Neo: Que verdade?

Morpheus: Que você é um escravo. Como tudo mundo, você nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar... Uma prisão para a mente*****

O diálogo entre os personagens é uma clara alusão a filosofia platônica, mais especificamente a alegoria da caverna. A alegoria da caverna sozinha é tão famosa quanta a sua formulação original e totalizante, a passagem da alegoria da caverna encontra-se na República, livro VII, escrita por pelo filósofo ateniense Platão. No livro VII da República, o personagem Sócrates, convida seu interlocutores a imaginarem com ele uma caverna subterrânea, ao fundo da caverna existem indivíduos presos, mais especificamente, acorrentados dos pés à cabeça, na qual nenhum deles podem mover-se, apenas olhar para frente. Com a impossibilidade de algum movimento, os prisioneiros apenas enxerga sombras e ouvem sons destas sombras, sendo assim, as sombras e os sons que os prisioneiros ouvem e enxergam serão tomados como verdadeiros.  De forma inesperada um dos prisioneiros é liberto. A conversa entre Morpheus e Neo é uma alusão ao trecho mencionado sobre a alegoria da caverna, entretanto, há algumas alterações entre a alegoria da caverna imaginada por Sócrates e seus interlocutores e o diálogo entre os dois personagens da longa-metragem. Morpheus diz a Neo que não tem como ele descrever a matrix para Neo, cabe a Neo escolher se quer ou não saber o que é a matrix, ao escolher saber o que é a matrix, Neo, toma a pílula vermelha, ao tomar a pílula vermelha, inicia-se o processo de libertação de Neo. Momentos depois Neo desperta em um local estranho, o hacker acorda em uma espécie de invólucro aquoso, além disso, Neo percebe que há diversos plugues em seu corpo e logo percebe que por algum motivo desconhecido os plugues estão sendo desconectados de seu corpo, consequentemente o seu corpo é expelido do invólucro. Essa cena do despertar de Neo é uma alusão ao prisioneiro da caverna que está sendo liberto de sua prisão.
Ao ser expelido do invólucro Neo é jogado em um esgoto, logo depois Morpheus e seus companheiros encontra-o e começa uma série de reparações no corpo de Neo. Este momento do filme também é um paralelo com a alegoria da caverna, no momento em que o prisioneiro sai de sua prisão e vê o mundo exterior fica cego, pois, o prisioneiro nunca tinha visto o Sol e a iluminação solar. Ao sair da matrix Neo perde os movimentos de seu corpo, com a ajuda de Morpheus, o corpo de Neo é restaurado. Assim como Neo, momentos depois o indivíduo recupera a sua visão, a partir disso, o indivíduo/Neo começa a distinguir o que é verdadeiro e o que é falso.
Enquanto o diálogo platônico irá desenvolver um raciocínio sobre a educação, isto é abordará a diferenciação entre a representação da imagem e a imagem propriamente dita. Já Matrix, opta por reformular a alegoria da caverna para a linguagem cinematográfica a fim de instigar o espectador a refletir sobre a realidade, isto é, o mundo que Neo conhece não passa de uma ilusão/simulação da matrix, sendo assim, cabe a Morpheus ajudar Neo a se libertar da Matrix para que Neo possa destruir a matrix, para que a humanidade possa ser livre. 
 
 Ceticismo cartesiano em Matrix
 
 Algumas das reflexões que Matrix levanta certamente é sobre a realidade, como distinguir, o real de um sonho? Desde o início do filme percebemos que a relação sonho/realidade é posto em cheque.  
Ao olharmos atentamente as primeiras aparições de Neo no filme perceberemos que ele está dormindo e quando desperta, desperta surpreso, como se não soubesse que havia dormido, podemos ir além disso, ao acordar, Neo parece estar insatisfeito com a realidade em que vive, parece haver algo errado. Não saber distinguir a realidade do sonho, é um problema filosófico já conhecido entre os filósofos. René Descartes, o pioneiro da filosofia moderna aborda a problemática de como distinguir o real da fantasia.
O filósofo francês René Descartes ganhou notoriedade por extrapolar os limites da filosofia. Nas Meditações, Descartes sugere ao leitor suspender os cinco sentidos, isto é, o olfato, paladar, visão, audição e tato, indo mais além, o filósofo também sugere a suspensão de nossas crenças. Para Descartes, tanto as nossas crenças, quanto os nossos sentidos podem nos manipular, deste modo não sabemos distinguir o verdadeiro do falso. Ainda nas Meditações o filósofo francês alega não saber distinguir quando está acordado de quando está dormindo, mais especificamente quando encontra-se no plano dos sonhos. Ou seja, assim como Neo em Matrix, Descartes também possuí dificuldades em distinguir o real do irreal.
Após sair da matrix e o período de recuperação/restauração, Neo e Morpheus vão para a construção, isto é, o programa de carregamento da matrix, nela os personagens conversam sobre a dificuldade de aceitar que libertou-se da matrix.

Neo: Estamos dentro de um programa de computador?

Morpheus: É tão difícil de acreditar? As roupas diferentes, os plugs nos braços e cabeça sumiram, seu cabelo mudou, a sua aparência é o que chamamos de autoimagem residual, é a projeção mental do seu eu digital.

Neo: Isto não é real? 

                                      Morpheus: O que é real? Como você define “real”?******
A partir deste diálogo entre os personagens é possível traçar um paralelo entre Morpheus e Descartes, pois de algum modo ambos adotam uma postura cética sobre o que podemos conhecer e saber. A postura cética de ambos provém de algo em comum, a existência de uma entidade que possui habilidades que manipula a realidade, no longa essa entidade manipuladora é personificada como a inteligência artificial matrix e para Descartes é o gênio maligno. Entretanto, os meios  que Morpheus e Descartes propõem para atingir a verdade são distintos. Morpheus, recorre ao uso de pílulas, a pílula azul (continuar sendo manipulado pela inteligência artificial) ou a pílula vermelha (libertar-se da manipulação). Descartes recorre ao uso da razão, segundo o filósofo a partir do uso da razão, isto é do raciocínio lógico, da matemática será possível sobressair-se da falsa realidade criado pelo gênio maligno.
Embora a conclusão do primeiro filme seja a conclusão da jornada do herói e ao mesmo tempo flerta com a ideia de um herói messiânico, retornamos a questão inicial: e se vivemos em uma simulação? Existe um meio de superar/transcender tal barreira? 
Na contemporaneidade, o filósofo francês Jean Baudrillard (1929 - 2007) propõem um novo conceito: hiper realidade, já o filósofo sueco Nick Bostrom desenvolve a hipótese da simulação, deste modo, podemos verificar que a investigação sobre a natureza da realidade é inesgotável, mesmo com o avanço das ciências cognitivas e da inteligência artificial não encontramos uma possível resposta que nos satisfaça minimamente.

* Personagem do filme Matrix. 
** Para fins didáticos faremos a seguinte distinção: Matrix quando mencionarmos o título do longa, e, matrix quando mencionarmos a entidade/inteligência artificial.
*** OLIVEIRA, Adriano A. A irrealidade no cinema contemporâneo.Cruz das Almas (BA). UFRB, 2011. Cap. 1, p.  20. 
*****  MATRIX, 1999, 26m49s-28m33s.
******Ibid.  39m52s-40m20s.
 
REFERENCIAS
 
ADORO CINEMA. Matrix.
DESCARTES, René. Meditações. In: DescartesTrad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 3a  ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). 
IRWIN, William (org.). Matrix. Bem-vindo ao deserto do Real. Trad.Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: ed. Madras, 2003.
MATRIX. (The Matrix). Direção: Andy Wachowski; Larry Wachowski. Produção: Silver, Joel. Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski. EUA: Warner Home Video. 1999. DVD (136 min.).
OLIVEIRA, Adriano A. A irrealidade no cinema contemporâneo. Cruz das Almas (BA). UFRB, 2011.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
 

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