Seriam os transumanistas democratas? Os transumanistas devem estar comprometidos e conduzidos pela democracia?
Voltemos ao Séc. XVIII, na qual a monarquia era a forma de governamentalidade vigente no período e no Ocidente (Europa). Imaginemos que um determinado grupo de humanistas progressistas de seu período pretendesse relacionar suas visões sobre a condição humana (visões revolucionárias para a época), no entanto, são as melhores ordens políticas para a época. Este grupo poderia fazer a seguinte declaração: “o humanismo moderno do século XVII é uma filosofia monarquista constitucional.” Tal declaração revela como este grupo progressista rejeita modelos ultrapassados, monarquia ilimitada ou teocracia.
Em nossos dias, consideraríamos engraçada uma promessa tão rapidamente ultrapassada. “O que o humanismo tem a ver, em essência, com a monarquia constitucional?”, poderíamos nos questionar. O humanismo defende o valor do progresso. Relacioná-lo ao sistema político de seu tempo (mesmo que fosse o melhor do período) iria confundir os fins (dignidade humana, autonomia individual, etc.) com os meios.
As organizações trans(h)umanistas que se autodeclaram como “transhumanistas democráticos” cometem um erro ainda maior. As vertentes trans(h)umanistas vão mais além, vislumbrando mudanças muito mais drásticas na condição humana. Associar o trans(h)umanismo a qualquer sistema político atual é míope e limitado para alguns. Para outros, pode simplesmente parecer uma tentativa evidente de se posicionar - como dizer aos estadunidenses que o trans(h)umanismo tem tudo a ver com “maternidade e a torta de maçã” ou como dizer aos europeus que o trans(h)umanismo está comprometido com a saúde universal fornecida pelo governo?
Uma organização trans(h)umanista não deve descrever seus comprometimentos básicos como “democráticos”, bem como não deve se considerar como um “grupo da internet” quando, na prática, e em suas aspirações, a organização interage por meio de qualquer meio de comunicação eficaz.
O que significa democracia e por que devemos valorizá-los?
Em um sentido amplo, democracia significa: “governo do povo, pelo povo e para o povo”.
Em outro sentido, a democracia é usada para significar um direito (quase) universal de votar em questões e/ou representantes. Por vezes, a democracia direta é tida como “a mais democrática” do que a democracia representativa.
Um terceiro sentido, inclusive, muito popular, a democracia é compreendida como uma combinação dos procedimentos eleitorais (como no segundo sentido de democracia) e dos procedimentos políticos e jurídicos específicos do país do interlocutor. Nos EUA, tais procedimentos referem-se principalmente às proteções constitucionais das liberdades individuais consagradas na Declaração de Direitos e na Constituição. No caso da Grã-Bretanha, argumenta-se que tal república constitucionalmente limitada existe em grande parte, de uma forma não escrita (no qual a Magna Carta é o principal documento escrito).
Em que medida estes significados se relacionam com as mais variadas filosofias trans(h)umanistas? O primeiro e mais amplo sentido de “democracia” visa eliminar, em princípio, o governo do “povo” por uma oligarquia.
Na prática, muitas pessoas não têm direito a voto (presos, residentes permanentes que pagam impostos, mas não são tidos como cidadãos de alguma nação). Aqueles que possuem o direito ao voto podem não possuir um conhecimento ou alguma motivação suficiente para votar. Aqueles que votam podem não possuir nenhuma opção de candidato, cargo ou um conjunto de políticas que represente suas preferências. O funcionamento complexo das democracias reais (e o envolvimento amplo do governo nas atividades comerciais) faz com que uma pequena porcentagem da população exerça a maioria da influência.
O segundo sentido de democracia possui uma conexão frágil com os valores trans(h)umanistas de autodeterminação, autotransformação e progresso. Uma democracia ausente de limites poderá oprimir grandes segmentos da população. É preciso lembrar que Adolph Hitler (1889-1945) foi eleito democraticamente. O sufrágio universal pouco tem a ver com liberdade (liberdade individual) ou outros valores que são caros aos trans(h)umanistas, principalmente quando votar não custa nada ao eleitor e não requer nenhum conhecimento. Como disse o grande jurista inglês Lord Acton (1834-1902): “É desagradável ser oprimido por uma minoria, mas é ainda pior ser oprimido por uma maioria. Pois existe uma reserva de poder latente nas massas que, se for acionada, a minoria raramente consegue resistir. Mas da vontade absoluta de todo um povo não há apelação, nem redenção, nem refúgio.”
É somente em alguns casos do terceiro sentido de democracia que encontramos uma relação mais forte com o trans(h)umanismo. Uma república constitucionalmente limitada que consegue proteger a liberdade e a responsabilidade defende uma ordem jurídica com duas características essenciais:
Em primeiro lugar, funcionários públicos possuem responsabilidade, pois suas ações oficiais estão sujeitas ao escrutínio público e a críticas irrestritas, e seu mandato oficial pode ser encerrado por aqueles governados por procedimentos gerenciáveis, como eleições populares ou o voto da maioria legislativa.
Em segundo lugar, o direito penal limita-se a proibir questões relacionadas com fraude, roubo e agressão. A lei e a política pública reforçam, em vez de reduzirem, a liberdade individual.
O valor da democracia, no sentido constitucionalmente limitado, reside na sua tentativa de reconhecer a soberania do indivíduo (um governo legítimo requer o consentimento dos governados), na sua intenção de limitar as oportunidades de abuso da autoridade centralizada.
A democracia é, ou deveria ser, um método de governar visando criar e aplicar um sistema de leis que proteja a liberdade de seus cidadãos. Os arranjos democráticos são somente um meio para alcançar o fim de proteger a liberdade individual. Um déspota benevolente poderia alcançar o mesmo fim (talvez até de forma mais eficaz e com menos inconvenientes) sem procedimentos democráticos. Seria dogmático insistir que a democracia seja a única maneira ou a melhor maneira para todas as sociedades, em todos os lugares e em todos os momentos, protegerem sua soberania individual.
Como Richard Taylor (1919-2003) afirmou em seu livro Freedom, Anarchy, and the Law (1973) “As formas e os procedimentos democráticos não são, como se pensa amplamente, preciosos em si mesmos e, portanto, uma meta apropriada para todas as nações. Pelo contrário, quando estabelecidos sobre uma base de ignorância e analfabetismo, eles podem ser profundamente perniciosos. Tais formas democráticas só são desejáveis quando oferecem a promessa de promover a liberdade por meio, entre outras coisas, da criação de leis penais segundo o princípio da liberdade. Caso contrário, são meras formas, sujeitas a todos os abusos e sem qualquer benefício para seu povo. São os fins ou propósitos de uma ordem jurídica que são importantes, não sua forma. Portanto, a crítica a qualquer governo de que ele é antidemocrático em sua forma tem, por si só, pouco peso ou significado” (p. 128-9).
Não é meu objetivo estabelecer uma estrutura abrangente para arranjos democráticos favoráveis aos objetivos e ideais trans(h)umanistas. Em termos dos objetivos desejáveis da democracia, então, irei me limitar a observar que poderíamos conceder extensões do governo democrático além da adesão clara e estrita ao princípio da liberdade para somente um outro objetivo geral: a de garantir os benefícios de uma organização em grande escala que não podem (em nenhum período específico da história) ser garantidos sem coação legal.
É muito fácil abusar do poder governamental (interesses particulares, engano, corrupção, custos ocultos, sede de poder). Qualquer passo além da proteção da liberdade e em direção à promoção do “bem comum” é extremamente perigoso. Tornar a democracia é demasiado fácil (votação direta, eleições muito frequentes) pode tornar os abusos mais frequentes. Incluir governadores no sistema de poder (limites constitucionais ao governo, requisitos de maioria qualificada, etc.) limita-se, em um certo sentido, o “governo pelo povo”, ao mesmo tempo que o protege de um “governo do povo” excessivo.
Não é possível que façamos algo melhor?
Trans(h)umanistas de todas as vertentes concordam o seu compromisso com melhorias contínuas e fundamentais na condição humana. Aqueles que identificam o trans(h)umanismo com a democracia prestam um desserviço ao nos prender a um arranjo historicamente transitório. Winston Churchill (1874-1965) é famoso pelo comentário “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas que já foram experimentadas.” As palavras de Churchill expressavam um racionalismo crítico saudável (uma atitude crucial para o transumanismo extropiano), enquanto enfatizam que os arranjos democráticos não possuem valores intrínsecos, eles possuem os valores de que somente enquanto nos permitem alcançar objetivos comuns, ao mesmo tempo, em que protegem nossa liberdade. Certamente, à medida que nos esforçamos para transcender as limitações biológicas da natureza humana, também podemos melhorar a política dos macacos?
Considere algumas das deficiências das formas existentes de democracia: a democracia indireta/representativa abre diversas oportunidades para interesses especiais. Corrupção e falta de compromisso em traduzir os valores dos cidadãos em políticas públicas.
Os cidadãos elegeram seus representantes somente a cada poucos anos e precisam escolher entre uma gama extremamente limitada de opções, nenhuma das quais representa suas opiniões de forma completa ou precisa. Podemos dizer “sim” ou “não” às questões altamente complexas.
As atividades governamentais, uma vez financiadas, são extremamente difíceis de reduzir ou encerrar. A lógica do governo é a de crescer. Não existe um mecanismo eficaz para desencorajar a votação em projetos e ações indesejáveis, inviáveis, prejudiciais e que restrinjam a liberdade individual.
Os benefícios da ação governamental são concentrados, enquanto os custos são distribuídos, criando uma tendência inerente à expansão da ação governamental e, ao mesmo tempo, piorando a situação geral de todos.
Mesmo sem tentar alterar a estrutura principal desse sistema falho, não é preciso muito para encontrar sugestões para melhorar a democracia. Aqui estão algumas soluções possíveis (não necessariamente recomendadas): retornar a uma adesão mais rigorosa aos limites constitucionais do governo - procedimentos especiais ou maiorias qualificadas necessárias para ampliar os poderes, por exemplo, a Declaração de Direitos dos EUA. Formulário fiscal flexível - amplia as opções dos cidadãos quanto ao uso de seus rendimentos. IFMs (para uma excelente especulação sobre o uso futuro das IFMs, consulte o romance Earthweb (1999), de Marc Steigler). Leis de caducidade usadas mais extensivamente - mantêm um limite no número de leis e exigem que elas sejam reafirmadas periodicamente. Aplicação automatizada das leis.
É claro que os trans(h)umanistas imaginaram mudanças mais profundas no nosso sistema político atual. Independentemente do que cada um de nós pensa sobre propostas específicas, o importante é evitar posturas míopes como as dos “transhumanistas democráticos.”
Algumas reflexões relacionadas, sobre a conexão entre o movimento popular democrático de exigir direitos de todos os tipos e as condições propícias à liberdade a longo prazo.
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