quinta-feira, 20 de junho de 2024

Georges Canguilhem e o pós-organismo

Esse ensaio deve ser compreendido como um esboço, em um outro momento  será retomado, deste modo, toda crítica é bem vinda, meus agradecimentos à Débora Aymoré pelo diálogo e interlocução.
Para Tawana Tábata.

Resumo: Este ensaio visa apresentar uma possibilidade de interpretação sobre a filosofia de Georges Canguilhem (1904-1995), sabendo que ao longo das suas obras e das suas reflexões, o conceito de organismo será fundamental para compreender a sua filosofia, tendo tal consideração em vista chamamos a atenção para a seguinte questão: qual a contribuição deste filósofo para uma sociedade tecnocientífica?Na tentativa de elucidar uma resposta é refletir sobre a possibilidade de um pós-organismo em sua teoria e quais os seus desdobramentos.
 Palavras-chave: organismo; pós-humanismo; pós-organismo; sociedade; tecnociência
 
Introdução

O que é a vida? Responder tal questão é uma tarefa difícil, mesmo aparentando ser uma questão rasa, contudo, se fazermos uma digressão sobre essa questão ao longo da história, percebemos que diversas áreas do conhecimento buscaram responder tal inquietação, na biologia, Margulis e Sagan (1995) apresentaram suas reflexões a respeito, recentemente, a partir de uma perspectiva da bioquímica, Paul Nurse (2021) também explora as facetas desta questão, Erwin Schrödinger também não resistiu em fazer uma contribuição a este respeito a partir da física teórica (1997), no campo filosófico, também houve a participação do célebre movimento existencialista francês. Entretanto, dando continuidade, retornamos à Georges Canguilhem (cf. Gomes, 2023, p. 75), sobretudo, a partir da sua compreensão sobre a interação entre a máquina e o organismo.

Embora de maneira modesta, este ensaio busca apresentar uma possível compreensão sobre a filosofia canguilhemiana, refletir sobre a possibilidade de um pós-organismo e quais são os seus desdobramentos na sociedade tecnocientífica.

Desta maneira, este ensaio será dividido em dois momentos: I) uma breve contextualização do conceito de organismo na filosofia de Georges Canguilhem, e, II) a possibilidade de refletir para além do que foi proposto pelo filósofo a partir de uma interpretação sobre o pós-organismo.  

 

Não se interroga mais pela vida hoje nos laboratórios. Não se busca mais definir seus contornos. Esforça-se apenas em analisar os sistemas vivos, sua estrutura, sua função, sua história. É pelos algoritmos do mundo vivo que se interessa hoje a biologia.

                                             François Jacob

 

Uma brevíssima apresentação

 

Para adentrarmos no tema propriamente dito, destacamos alguns pontos a respeito do filósofo. O seu alinhamento com a epistemologia histórica[1] é fundamental para compreendermos o seu diálogo entre a filosofia e as ciências da vida.

A filosofia de Canguilhem seria uma epistemologia, uma investigação sobre procedimentos de produção do conhecimento científico, uma avaliação da sua racionalidade, uma análise de cientificidade. Seguindo Bachelard, Canguilhem propõe uma epistemologia regional que busca explicitar fundamentos de um setor particular do conhecimento – no caso, as ciências da vida. Canguilhem exerce seu projeto epistemológico através da reflexão sobre a história dessas ciências. Ou seja, a característica essencial do projeto epistemológico de Canguilhem é a relação intrínseca entre a epistemologia e a história das ciências (Machado apud Czeresnia, 2010, p. 711).

Ao longo da sua vida Canguilhem irá articular de modo exemplar o diálogo entre a biologia, a filosofia e a medicina, ou seja, as suas reflexões serão voltadas a uma maneira especifica em produzir epistemologia, filosofia e a política (sociedade), isto é, Canguilhem não está interessado em proporcionar uma distinção entre as áreas concernentes, as fronteiras entre elas são tênues, se é que existe alguma possibilidade de demarcação em sua reflexão.[2]  

Canguilhem começa a desenvolver a sua reflexão sobre a vida, o organismo a partir da publicação e a recepção da sua célebre obra O normal e o patológico (1943), embora reconheçamos que o filósofo francês possua uma postura vitalista sobre o organismo, tal posição pode ser identificada na obra mencionada, posteriormente, será Canguilhem irá propor uma nova compreensão de vitalismo: o vitalismo crítico (cf. Souto, 2021, p. 213-214), tendo em vista tais características sobre o pensamento de Canguilhem, daremos início a reflexão proposto propriamente.

Em sua obra posterior, O conhecimento da vida (1952), mais precisamente, no segundo capítulo da terceira parte intitulado “Máquina e organismo”, Canguilhem irá apresentar uma interpretação possível sobre a filosofia cartesiana, mais precisamente, o dualismo corpo-máquina, Canguilhem irá afirmar que esta interação corpo-máquina, isto é, os órgãos funcionariam semelhante às máquinas é um fenômeno do seu tempo, sobretudo, as teorias do maquinismo que estavam surgindo neste período (Canguilhem, 2012, p. 117-118).

Canguilhem também irá chamar a atenção de como Descartes irá se apropriar desta teoria do maquinismo para desenvolver a sua compreensão sobre o autômato e o animal-máquina (Canguilhem, 2012, p. 118-120). Assim como alguns leitores, tais como La Mettrie (1709-1751) e Spinoza (1632-1677) e o próprio Canguilhem irá divergir da posição de Descartes, sobretudo a sua metafísica.

Para Canguilhem, a máquina é um artefato técnico construído pelo homem e que está essencialmente relacionado com a mecânica, este mecanismo é uma configuração de sólidos em movimento, de tal forma que o movimento não abole a configuração (cf. Canguilhem, 2012, p. 108).

Através desta possível interpretação sobre a filosofia cartesiana, Canguilhem irá afirmar que a relação máquina-organismo não faz sentido, isto é, a máquina não irá superar o funcionamento do organismo, ao contrário, ele está para auxiliá-lo, no limite, uma assimilação por parte da máquina sobre o organismo[3] (cf. Canguilhem, 2012, p. 121).

Se aceitarmos as considerações de Canguilhem e levando em consideração a consolidação do advento da tecnociência, sobretudo a convergência do NBIC (Nanotechnology, Biotechnology, Information Technology and Cognitive science) poderíamos apresentar a seguinte questão: “devemos considerar que a máquina (objetos técnicos) superou o organismo?”

Pedro Kritski (2023), chama a atenção para uma passagem no texto de Canguilhem, que posteriormente será desenvolvido com mais profundidade na Encyclopédie Universalis (1973).  “A vida é a formação das formas, o conhecimento é a análise das matérias informadas” (Canguilhem apud Kritski, 2023, p. 170).

Ao retomarmos o seu verbete “vida”, escrito para a Encyclopédie Universalis, veremos que o filósofo irá apresentar quatro definições sobre o conceito de “vida”, neste momento, gostaríamos de chamar a atenção para a sua quarta definição: A vida como informação.

Nesta seção do verbete o filósofo irá esboçar a sua perspectiva sobre a vida a luz da cibernética, sobretudo, através dos pioneiros Claude Shannon (1916-2001) e Norbert Wiener (1894-1964).

Os trabalhos de C. E. Shannon (1948) sobre a teoria das comunicações e da informação, sobre as relações entre a teoria da informação e a termodinâmica, pareceram trazer à filosofia biológica os elementos de uma resposta positiva à questão milenar da natureza e da função da vida. O segundo princípio da termodinâmica, que explica a irreversibilidade das transformações num sistema isolado, por degradação da energia ou por crescimento da entropia, concerne objetos indiferentes à qualidade de seus estados, inertes, mortos. O organismo, que se alimenta, cresce, regenera suas mutilações, reage às agressões, cura espontaneamente certas doenças, não está em luta contra o destino da desorganização universal proclamado pelo princípio de Carnot? Seria a organização uma ordem no seio da desordem? A manutenção de uma quantidade de informação proporcional à complexidade da estrutura? Em sua linguagem algorítmica própria, a teoria da informação não diria mais sobre os viventes do que Bergson na Evolução criadora? (Canguilhem, 2020, p. 309).

Embora não esteja explícito na seção, é possível perceber uma mudança de posição a respeito da vida, tal mudança ocorre devido a própria revolução científica, isto é, Canguilhem presencia algumas rupturas científicas, mais especificamente o progresso no campo da biologia molecular, como a descoberta do DNA, a sistematização da teoria da informação e, o aprofundamento dos estudos sobre a segunda lei da termodinâmica, mais especificamente, o debate em torno da desordem. Tais rupturas epistemológicas irão provocar o entendimento que o filosofo possui sobre o que é a vida, ou seja, há um certo afastamento sobre a sua posição vitalista (cf. Canguilhem, 2020, p. 308-309).

Canguilhem é um filósofo que irá se debruçar sobre a vida, não no seu sentido existencial, mas biológico e epistemológico, entretanto, o filósofo não está interessado em apresentar uma reflexão fechada, isto é, definitiva, ao contrário, o filósofo está interessado em apresentar as suas nuances históricas e suas implicações ao longo da história da ciência e da filosofia, na qual trará implicações no campo das ciências da vida logo, na sociedade.

 

Pós-organismo canguilhemiana?

 

Retomamos a questão central deste ensaio, “É possível pensar o pós-organismo a partir das reflexões de Canguilhem?” Embora que em um primeiro momento seja anacrônico ou até mesmo incompatível, partimos do pressuposto que as reflexões do filósofo permitem a compreender certos aspectos da sociedade tecnocientífica e as suas complexidades.

Como bem destaca Débora Aymoré (2022), a sociedade contemporânea possui uma relação simbiótica com a tecnociência, vivenciamos a passagem da Big Science para ao Little Bang, miniaturização das tecnologias que possam intervir no micro/nano como os bits, átomos, neurônios e genes (Aymoré, 2022, p. 330). Em outras palavras, o projeto baconiano, a sobreposição da espécie humana sobre a natureza tornou-se realidade com a consolidação do progresso tecnocientífico.

Através do progresso tecnocientífico, retomamos a um importante aspecto de seu projeto, o aprimoramento humano (human enhancement), uma possível efetivação é através pós-organismo, isto é, uma subversão/mutação do orgânico, do organismo biológico.

Neste sentido, Paula Sibilia ao propor uma reflexão epistemológica e ontológica sobre os desdobramentos da tecnociência sobre o corpo orgânico do ser humano, a pensadora irá esboçar a sua compreensão sobre corpo pós-orgânico (cf. Sibilia, 2015, p. 69-71).

            A hipótese, ou melhor, a realização desta operação fáustica começa a ser considerada a partir do advento da tecnociência, ou seja, enquanto no século passado, Canguilhem advogava por uma subserviência da máquina (técnica) para com o organismo, na contemporaneidade temos justamente o contrário, enquanto o primeiro advogava pela manutenção da vida o segundo irá prometer o prolongamento de uma vida, que não satisfeito com tal promessa, também se propõem que através deste prolongamento, deste salto evolutivo, o ser pós-orgânico será uma criatura perfeita, pois este não possui as imperfeições da carne, do biológico.

A sugestão de um ser pós-orgânico provoca alarde e entusiasmo em diversos campos da área do conhecimento, na contemporaneidade, o mais conhecido é o debate entre tecnprogressistas e bioconservadores[4].

Mesmo sendo referenciado ao lado dos bioconservadores[5], Thierry Hoquet, apresenta e desenvolve uma nova perspectiva sobre a filosofia de Canguilhem, a partir da sua compreensão sobre a filosofia canguilhemiana, Hoquet apresenta o conceito de “Organorg”.

Propomos chamar “Organorg” o conjunto máquina-organismo pensado como uma ferramenta ao mesmo tempo externa e interna, sem carnificina ou amputação, um organismo equipado, dotado de novos órgãos. Organorg designa a maneira canguilhemiana em que um organismo vivo se prolonga em ferramentas ou em artefatos (organom em grego) (...) (Hoquet, 2019, p. 19).

Oa[6] “Organorg” deve ser compreendido como uma extensão da filosofia canguilhemiana, assim como uma nova proposta de vislumbrar a imagem do pós-orgânico. Oa organorg canguilhemiano deve ser compreendido como uma alternativa, ou até mesmo mais plausível do que as especulações miraculosas do transhumanismo, particularmente, a vertente extropiana.

De maneira sintética, o transumanismo extropiana é tido como uma das vertentes mais radicais dentre as demais vertentes, sendo considerado até mesmo como anti-humanista, um dos principais representantes desta vertente é o casal More, Max More e Natasha Vita-More. O transumanismo extropiano se autointitulam como herdeiros do discurso iluminista, pois advogam pela radicalização do racionalismo, mais precisamente sobre a utilização exacerbado de instrumentos técnicos, oriundos do advento tecnocientífico, da bioengenharia para o aprimoramento da espécie humana, ou seja, através deste aprimoramento promovido pela bioengenharia, a condição humana, seria erradicada, o próximo passo da evolução da espécie é transumana (cf. More, 2003). 

Para darmos continuidade sobre o conceito de “Organorg” e as suas implicações no debate pós-orgânica/humanista, para não haver algum equívoco conceitual, iremos esclarecer o que está sendo compreendido como pós-humanismo neste momento.

Segundo as considerações de Francesca Ferrando (2019), embora em diversas ocasiões o conceito de pós-humanismo é tido como uma terminologia guarda-chuva, pois abarca diversas vertentes e movimentos, além de em diversos momentos de ser interpretado como sinônimo de transhumanismo. A filósofa irá apresentar de maneira satisfatória a distinção entre I) o que os transhumanistas compreendem como pós-humanismo e II) e que não necessariamente o pós-humanista é uma linha de continuidade com o transhumanismo, ou seja, o pós-humanismo possui uma agenda própria.

As áreas de maior confusão de significado são aquelas compartilhadas por pós-humanismo e transumanismo. Existem diferentes razões para tal confusão. Ambos os movimentos surgiram mais especificamente no final dos anos 80 e início dos anos 90, com interesses em assuntos similares. Eles compartilham uma percepção comum do humano como uma condição não fixa e mutável, mas eles geralmente não compartilham as mesmas raízes e perspectivas. Além disso, dentro do debate transumanista, o conceito de pós-humanismo em si mesmo é interpretado de uma forma transumanista específica, o que causa confusão adicional na compreensão geral do pós-humano: para alguns transumanistas, os seres humanos podem se transformar tão radicalmente, que, ao final, tornam-se pós-humanos, a esperada condição que irá se seguir à atual era transumanista. Tal perspectiva no pós-humano não deve ser confundida com a abordagem pós-antropocêntrica e pós-dualista do (filosófico, cultural e crítico) pós-humanismo[7] (Ferrando, 2019, p. 959-960)

Ferrando busca precisar a sua compreensão sobre o projeto onto-epistêmico pós-humanista.

Se o pós-humanismo e o transumanismo compartilham um interesse comum na tecnologia, as maneiras pelas quais elas refletem sobre essa noção é estruturalmente diferente. A dimensão histórica e ontológica da tecnologia é uma questão crucial, quando se trata de uma compreensão adequada da agenda pós-humana; no entanto, o pós-humanismo não coloca a tecnologia em seu foco principal, o que reduziria sua própria tentativa teórica a uma forma de essencialismo e de tecnorreducionismo. (...) O que transumanismo e pós-humanismo compartilham é a noção de tecnogênese. A tecnologia é uma característica do equipamento humano. Mais do que uma ferramenta funcional para obtenção de energia, tecnologia mais sofisticada ou até mesmo imortalidade, a tecnologia chega ao debate pós-humanista através da mediação do feminismo, em particular, através do ciborgue de Donna Haraway e seu desmantelamento de dualismos estritos e de fronteiras, como os existentes entre humanos e animais não humanos, organismos biológicos e máquinas, o reino físico e não físico; e ultimamente, o limite entre a tecnologia e o self (Ferrando, 2019, p. 963).

Através desta gênese do pós-humanismo sistematizado por Ferrando, começamos a compreender a complexidade sobre o debate no qual o conceito está inserido. Além disso, também cabe ressaltar que assim como foi proposto por Hoquet a partir do conceito de “Organorg”, essa perspectiva do pós-humanismo está interessada em refutar essa compreensão dualista, como propõe Donna Haraway e o próprio Hoquet, assim como também tem como agenda criticar e superar o projeto transhumanista, como o já mencionado transumanismo extropiana, em outras palavras, a compreensão pós-humanista que está sendo apresentado pretende se apresentar como uma alternativa a essa extinção ao humanismo e não levar em consideração os demais modos de vida, sobretudo, as não humanas.

Ainda sobre a sua compreensão sobre oa “Organorg”, embora que seja possível fazer uma aproximação entre oa “Organorg” e o “Ciborgue”, Hoquet irá chamar a atenção para a diferenciação entre estes conceitos.

Duas lógicas distintas animam Ciborgue e Organorg. Organorg mostra-se repleto de muita compunção colonial, quase Quarta República. Consciente de seus poderes, de sua natureza, de suas ambições, Organorg instala o Humano, e talvez o Homem, no centro do seu projeto e do seu mundo. Organorg é a extensão natural do mundo equipado; não hibridiza nada, não coloca em discussão nenhuma dicotomia. Descreve a relação do Homem com suas ferramentas: no máximo admite que a Técnica, longe de ser somente humana é vital (Hoquet, 2029, p. 222).

Ainda sobre essa distinção, o filósofo encerra da seguinte maneira: “Por isso, Ciborgue espalha promessas que Organorg jamais ousaria fazer: elela anuncia a supressão do stuff, promete a imortalidade, sonha corpos sem órgãos e órgãos sem corpo. (Hoquet, 2019, p. 223).

A partir de uma compreensão sobre o conceito de “Organorg”, Débora Aymoré (2023) irá dar continuidade na proposta de Hoquet sobre a possibilidade de um pós-organismo e a ruptura com uma forma de dualismo.

Segundo Aymoré, uma possível compreensão sobre o Organorg é se levarmos em consideração que elela é uma conjunção entre o “Organismo” canguilhemiano e o “Ciborgue” de Haraway, por isso que é uma diluição de um tipo de dualismo, orgânico/máquina[8] e de gênero (cf. Aymoré, 2023, p. 286-287).

Ao apresentarmos essa hipótese da possibilidade de um pós-organismo a através da filosofia canguilhemiana, através da apresentação do conceito de “Organorg”, vislumbramos alguns desdobramentos.

Se levarmos em consideração as promessas feitas pela tecnociência e pelo pós-humanismo aqui apresentado, oa “Organorg” de fato é uma possibilidade de pós-organismo, ou seja, o Organorg é a promessa mais próxima de tornar-se materializável através do aprimoramento humano (human enhancement).

 

Conclusão

 

Ao longo deste ensaio buscamos apresentar a possibilidade de refletir sobre as complexidades epistemológicas, pós-biológica e tecnocientíficas que perpassa na sociedade contemporânea a partir de uma filosofia canguilhemiana.  

Se aceitarmos as considerações do filósofo e médico francês, compreendemos o seu posicionamento em não incentivar em demarcar uma fronteira entre as áreas por ele estudado, a biologia, a epistemologia, a filosofia e a política (sociedade).

O ensaio também buscou apresentar além do já conhecido posicionamento de Canguilhem sobre a sobrevalorização do capital sobre a vida (cf. Gomes, 2023, p. 88), isto é, mesmo não tendo vislumbrado a efervescência do advento tecnocientífico, Canguilhem, a partir de uma postura vitalista crítica buscou não contribuir para a hierarquização entre o orgânico e o inorgânico (máquina).

Através da compreensão sobre a ciências da vida e a própria vida que Canguilhem propõe, Thierry Hoquet nos apresenta uma alternativa pós-orgânica, no limite, pós-humana. Embora seja facilmente associado ao bioconservadorismo, ao lado de outras propostas pós-humanistas, a filosofia canguilhemiana é uma possível alternativa de diálogo e interação entre humanos e não-humanos. “No entanto, é apenas no cultivo das

relações com meios e pessoas que as condições materiais de existência se realizam, possibilitando a existência claudicante dos híbridos de máquina e organismo (Aymoré, 2023, p. 297).

            Tendo em vista que há uma possibilidade de compreender certos aspectos das promessas tecnocientífica (pós-humanista) e da sociedade tecnocientífica a partir da filosofia canguilhemiana, em um trabalho futuro gostaríamos de aprofundar essa reflexão em torno doa Organorg. 


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[1] Por questão de espaço não iremos adentrar nesta importante escola filosófica francesa, para uma compreensão mais detalhada sugerimos Castellana (1990), Souto (2022) e Caio Souto – Conversações filosóficas (2022).

[2] Ainda sobre o programa filosófico canguilhemiano não estar interessado nesta demarcação de onde começa uma reflexão sobre uma determinada área do conhecimento, basta perceber a maneira em que o filósofo irá articular os conceitos de vida, de organismo e vivente ao longo das suas reflexões (cf. Labrea; Madarasz, 2015, p. 243- 247).

[3] Para uma análise mais profunda sobre a interpretação de Canguilhem sobre este aspecto da filosofia cartesiana sugerimos a leitura de Teixeira (2018), na qual o autor irá debruçar com rigor apresentando com detalhes os estudos de Canguilhem sobre Descartes e a relevância do texto “Máquina e o organismo” para compreendermos aspectos importantes de sua filosofia (Teixeira, 2018, p. 340-341).

[4] Embora seja o debate que possua mais notoriedade neste campo, Torralba (2018), na nossa compreensão tal debate é caricatural, pois empobrece a complexidade destes estudos, para uma compreensão mais detalhada sugerimos a leitura de Oliveira (2018); Lopes e Oliveira (2020) e Vilaça (2020).

[5] López e Vázquez (2021).

[6] Na tentativa de estar alinhado a linguagem utilizado por Hoquet ao se refere ao “Organorg” ‘Elela’, optamos pela utilização da grafia ‘oa’. A utilização deste vocábulo se justifica com a possibilidade de subverter a lógica do gênero dualista.

[7] Assim como a própria Ferrando (p. 960), enfatizamos a dificuldade em demarcar com precisão a gênese do conceito de pós-humanismo, para uma compreensão sobre este problema sugerimos a leitura de Ferrando (2019); Neves (2022) e Saber Cotidiano (2020a, 2020b).

[8] Além desta ruptura dualista, a filósofa irá discorrer sobre a ruptura de um dualismo vinculado aos estudos feministas, mais especificamente sobre os estudos pós-gênero (Aymoré, 2023, p. 1).



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