domingo, 26 de fevereiro de 2023

Transhumanismo e liberdade

O que é liberdade?
Como uma pergunta pequena como essa pode assombrar a sociedade ao longo da história?
Existe liberdade? A liberdade possui limites? O entendimento que possuímos de liberdade interfere no discurso político, nas políticas públicas? 
Ao longo deste pequeno ensaio todos estes questionamentos serão contemplados, sejam diretamente ou indiretamente.
Com o advento da tecnociência, a sociedade contemporânea visualiza a possibilidade do prolongamento da vida humana (ou até mesmo a imortalidade) como algo plausível, através do aprimoramento humano (human enhancement)*, segundo uma série de personalidades como David Pearce, Francesca Ferrando, Natasha Vita-More, Julian Savulescu e Nick Bostrom advogam que o aprimoramento humano é o próximo passo da evolução humana, o transhumano (ou o pós-humano).
 

 
 
Em rápidas palavras o transhumanismo pode ser definido como um movimento "futurista" que busca superar a condição humana (natureza humana) através da relação simbiótica entre organismo vivo e a tecnologia. 
Julian Huxley (1887-1975), um importante cientista da sua época, foi um dos primeiros a utilizar a palavra "transhumanismo". Para Huxley, assim como os demais organismos vivos, o homem também está em processo de evolução; no entanto, o homem possui um diferencial em relação aos demais organismos, pois, além da evolução biológica, o homem também evolui através do progresso científico. Ou seja, a partir da primeira revolução industrial (1760-1840) e a pós-Segunda Guerra Mundial a tecnologia deu um grande salto e, deste modo, com o auxílio da tecnologia, o homem iria transcender de um modo jamais imaginado, o termo que Huxley encontra para explicar essa transcendência é a palavra transhumanismo.
Como podemos ver, o projeto transhumanista promete o aprimoramento da espécie humana (ou seria uma nova espécie?) e prolongamento da vida através da simbiose com a (nano)tecnologia, além da promessa de nossas consciências viverem fora do nosso corpo orgânico através do procedimento de mind uploading.
A partir dos avanços das tecnociências e das biotecnologias o que era como mera especulação (ou até mesmo extrapolação) da ficção científica vem se materializando, isto é, as promessas do transhumanismo já começaram a tornar realidade, filósofos como Julian Savulescu afirma que se já há meios do homem evoluir, o mesmo possui o dever (responsabilidade)** de evoluir do humano para o transhumano.
Um dos problemas que algum adepto do transhumanismo tem de lidar é justamente com o a liberdade. Nós possuímos a autonomia de alterar o nosso corpo como bem queremos? O que estamos entendendo por liberdade neste momento?
Segundo o verbete "liberdade" do Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagno:
 Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é a ausência de condições e limites. II liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a auto determinação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substancia, Estado); III liberdade como possibilidade de escolha, segundo a qual liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. Não constituem conceitos diferentes as formas que a liberdade assume nos vários campos, como por exemplo liberdade metafísica, liberdade moral, liberdade política, liberdade econômica e etc. A disputas metafísicas, morais políticas, econômicas, etc, em torno da liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam.
Através desta definição vislumbramos que o entendimento corriqueiro sobre liberdade não comporta as complexidades existentes neste conceito. Assim como foi ao longo da história, a compreensão de liberdade foi sendo alterada, o mesmo ocorre na contemporaneidade. Ao refletirmos sobre o transhumanismo e as suas implicações reais no mundo, percebemos que não é uma liberdade qualquer que o transhumanismo está reclamando para si, é uma liberdade um tanto desconhecida, a liberdade morfológica(morphological freedom).
Embora seja um conceito ainda em formação, a liberdade morfológica pode ser compreendida como uma extensão da liberdade individual, mais especificamente a liberdade morfológica é o direito de autopropriedade que o indivíduo possui do próprio corpo.
Como mencionado, o conceito de liberdade morfológica ainda está em desenvolvimento, entretanto, é um conceito que vem chamando atenção da filosofia, da bioética e da jurisprudência. Dois nomes importantes para a difusão deste conceito são os filósofos contemporâneos Anders Sandberg e Max More. More é tido como o formulador do conceito, cabe ressaltar que More é um entusiasta do transhumanismo extropiano***, que está relacionado a uma ideologia deturpada do liberalismo, para os transhumanistas extropianos não há problemas que Gaia esteja em ruínas, a vida orgânica baseada em carbono não importa.
Assim como os pensadores da antiguidade já chamavam atenção para os problemas da liberdade, na contemporaneidade a partir do progresso tecnocientífico e biotecnológico tais perigos tornou-se mais aguda.
Para os filósofos transhumanistas a liberdade morfológica deve ser levada em consideração, ou seja, e não essa concepção usual de liberdade social, pois, segundo esta visão, a liberdade social possui uma série de restrições que não permite que a humanidade atinja o próximo estágio evolutivo.
O transhumanismo provoca uma série de reações, uma delas é a urgência de uma reformulação ética em nível global. Até onde a humanidade está disposta a avançar em nome do progresso evolutivo?

* Neste texto não iremos adentrar nas especificidades do conceito de aprimoramento humano, assim como não iremos comentar sobre o progresso da terapia genética, para os interessados pelo tema indicamos a leitura do texto anterior "Gattaca e o aprimoramento humano."
**Embora neste ensaio não tenha a pretensão de aprofundar no assunto, gostaria de chamar a atenção para a palavra "responsabilidade", Savulescu e outros filósofos transhumanistas não utilizam esta palavra no mesmo sentido que Hans Jonas usa, por exemplo. Enquanto o primeiro utiliza no sentido do progresso, o segundo usa no sentido de cuidado.
 *** Neste momento a palavra extropia é usada como antônimo de entropia.
 
Para assistir:
 
 
Para ler:
 
Luc Ferry. A revolução transumanista.
Nick Bostrom & Julian Savulescu (Eds.). Human enhancement.

Nenhum comentário:

Postar um comentário