Neste ensaio apresentamos a relevância do poema de Lucrécio, Sobre a natureza das coisas, além disso, discorreremos sobre a contribuição deste filósofo para a consolidação do materialismo no campo da ciência da natureza, mais especificamente no campo da física, também faremos algumas considerações sobre a palavra “átomo” e a sua repercussão em seu pensamento e na própria filosofia atomista.
Mas o que um poeta romano do primeiro século a.C. poderia ter para nos contar hoje sobre a história do universo e de nosso planeta que os físicos e historiadores contemporâneos ainda não conhecem? (...) Muito da estrutura básica da cosmologia contemporânea, da física e da história, quer os cientistas o conheçam ou não, foi apresentado por Lucrécio. Os cientistas têm preenchido as notas de rodapé desde então.
Thomas Nail
Assim como outras obras literárias, De rerum natura (séc. I a.E.C.)[1], escrito pelo filósofo e poeta romano Tito Lucrécio Caro proporcionou grande repercussão durante o período em que foi publicado e posteriormente ao longo da história da civilização ocidental.
Após a sua publicação notamos que a sua influência não foi apenas no campo da literatura, mas também no campo da filosofia e da ciência, chamamos a atenção para o campo da física. Na contemporaneidade filósofos como Gilles Deleuze (1925-1995), Karl Marx (1818-1883), Marco Antonio Valentim e Thomas Nail entre outros se debruçam sobre a filosofia de Lucrécio.
Assim, voltamos a Lucrécio hoje não como se ele fosse uma figura imutável esculpida em pedra, mas como se ele fosse um sopro de vida nova na vanguarda do século XXI. (...) Mas o que um poeta romano do primeiro século a.C. poderia ter para nos contar hoje sobre a história do universo e de nosso planeta que os físicos e historiadores contemporâneos ainda não conhecem? Por que fazer a Lucrécio nossas perguntas? É verdade que, em certo sentido, sabemos muito mais sobre a história material do universo hoje do que há dois mil anos. Entretanto, é crucial lembrar que uma das razões pelas quais sabemos tanto quanto atualmente é por causa de Lucrécio (...) (NAIL, 2021, p. 15).
Este ensaio tem como objetivo, mesmo que seja de maneira breve, apresentar a relevância e repercussão da obra de Lucrécio na contemporaneidade, mais especificamente no campo das ciências duras (na física). Ao desenvolver a sua reflexão sobre a natureza das coisas a partir de uma perspectiva materialista, Lucrécio não fundamenta sua teoria a partir de uma cosmologia divina, mas sim a partir de uma cosmologia da matéria (átomo e vazio).
Deste modo, partimos do pressuposto que Lucrécio inaugura (ou propõe) o materialismo científico. Além deste tópico apresentaremos um fato curioso na obra do poeta, em momento algum Lucrécio utiliza a palavra “átomo” em sua obra, entretanto, veremos que em algumas traduções de língua moderna, alguns tradutores optaram por utilizar a palavra, a partir disso faremos algumas considerações.
Segundo especialistas, além de ter sido influenciado pela filosofia epicurista, o poeta pode ser considerado como um dos mais influentes representantes desta escola durante o seu período. David Sedley (2018), chama a atenção para a influência do epicurismo no império romano, figuras públicas como Cícero (106-43 a.E.C.) e Mêmio (possivelmente Gaius Memmius) eram apreciadores do epicurismo (SEDLEY, 2018).
Inspirado pelo materialismo epicurista, Lucrécio rejeita as explicações sobre o mundo/natureza a partir de alguma intervenção dos deuses, assim como seu mestre Epicuro (341-270 a.E.C.), Lucrécio parte do pressuposto que a vida humana (e não humana), os cosmos existem por acaso a partir da reunião dos átomos[2], ou seja, para Epicuro e Lucrécio a vida não deve ser compreendida como uma dádiva dos deuses ou que possua alguma intencionalidade. Ou seja, para estes filósofos a realidade, a natureza e o cosmo pode ser compreendida e explicada a partir do materialismo.
Entretanto, mesmo que a vida seja um conglomerado de átomos, não significa que a vida não deve ser aproveitada, ou seja, Lucrécio também concorda com o epicurismo que devemos buscar a felicidade, não temer a morte e não acreditar na intervenção dos deuses[3]. Deste modo, é possível afirmar que através de sua poesia, Lucrécio possui a intenção de difundir o materialismo no território do império romano.
A teoria atômica desenvolvida na Escola epicurista chega pronta à pena de Lucrécio. O poeta não se incumbe de desenvolver os conteúdos filosóficos veiculados em sua obra, mas de difundi-los pelo mundo romano – o que não quer dizer que a empresa tenha sido menos árdua. O De rerum natura, sob esse ponto de vista, pode assumir as feições de obra missionária, cujo
desígnio é o de esclarecer e libertar à luz da razão. (...) A Criação não é obra divina; céu, terra, água, a vida vegetal e animal, tudo é consequência do eterno movimento de partículas infinitamente pequenas a que chamamos átomos (SIMÕES, 2017, p. 224).
A partir disso, percebemos que a obra de Lucrécio é detentora de conteúdo subversivo, isto é, o materialismo difundido pela sua poesia, questiona o papel dos deuses, assim como encoraja o leitor a não temer a morte. Além destas características a sua poesia também contribui para que a ciência ganhe notoriedade nos círculos da intelligentsia romana (SEDLEY, 2018).
Ao longo do Livro I de DRN, Lucrécio discorre sobre a impossibilidade de algo vir do nada e da matéria existir na forma de pequenas partículas.
Tal é o princípio que fundamenta, princípio primeiro: coisa nenhuma jamais vem do nada por ato divino.
Naturalmente o medo domina todo os homens,
pois muitas coisas vê-se que ocorrem no céu e na terra
cujas causas não podem ver de maneira nenhuma,
pensam assim que acontecem por nume divino potente.
Quando tivermos visto nada poder ser criado vindo do nada
O que buscamos então percebemos mais perspicazes e de onde se possa tudo criar-se e de que modo tudo se faça sem o divino.
Pois se do nada viessem a ser, então todas espécies nasceriam de todas as coisas, sementes não tendo (DRN Livro I, versos 146-160, 2021, p. 60).
E o poeta continua, desta vez discorrendo sobre a matéria:
Vamos agora: já que ensinei que uma coisa não pode
ser criada do nada, ou pra lá as nascidas voltarem,
para que não desconfies, talvez, das coisas que digo,
por não poderem, aos olhos, discernir-se os primórdios,
é necessário, portanto, que confesses que aceitas
existirem nas coisas corpos que são invisíveis. (...)
Mas quais corpos primevos descolam a cada momento,
ínvia natureza nos impede de vermos.
Finalmente, o que quer que a natura e os dias às coisas
atribuam, as fazendo crescer paulatinas,
a acuidade dos olhos contemplar nunca pode;
nem todavia de tudo que idade que pobreza envelhece,
nem das rochas ao lado do mar pelo sal desgastadas,
nuncas poderás discernir o que perdem aos poucos.
A natura assim gere as coisas com corpos não vistos (DRN Livro I, versos 265-32, 2021 p. 70-72).
A partir destes trechos e ao longo de sua poesia Lucrécio está descrevendo fisicamente a natureza, a realidade ao seu redor, os universos. Embora possua uma descrição poética, Lucrécio desenvolve a sua compreensão da física a partir do materialismo, ou seja, tudo que existe, tudo que observamos (e o que não conseguimos observar), tudo que sentimos (e o que não conseguimos sentir) a partir da matéria, corpos primordiais. Deste modo, percebemos as palavras “matéria”, “corpos primordiais” que podem ser facilmente substituídas pela palavra “átomo.”
Curiosamente a única obra materialista que sobreviveu aos eventos e infortúnios da história foi De rerum natura, ou seja, mesmo que esta escola filosófica seja anterior a Lucrécio, na modernidade e na contemporaneidade Lucrécio é o mais importante representante desta filosofia (BATISTA; BATISTA; BRAGA; NETO, 2003, p. 19). Como já mencionado anteriormente, o filósofo de Roma é um importante contribuinte para o desenvolvimento e aprofundamento da física moderna e da física contemporânea. Lucrécio é fundamental para que a física moderna questione a legitimidade da física aristotélica[4], além de contribuir para a diversidade de teorias atômicas da química e de outras teorias desse campo (PORTO, 2012, p. 4061), além disso, o filósofo romano é considerado como o precursor da cosmologia quântica (CARROLL, 2008).
Com a redescoberta da obra de Lucrécio, diversos pensadores propensos aos estudos científicos são influenciados, embora não tenham aceitado a teoria materialista como um todo, Galileu Galileu (1564-1642) Giordano Bruno (1548-1600) utilizam parte da teoria materialista para desenvolverem a sua teoria sobre o universo (PORTO, 2013, p. 4601.5-4601.6).
Cabe mencionar também que assim como na antiguidade, após a sua redescoberta, a obra de Lucrécio gerou polêmicas, tanto no campo das ciências, assim como no campo da filosofia, entretanto, a partir do desenvolvimento da teoria cinética, a teoria dos átomos começou a ganhar legitimidade nas respectivas áreas do conhecimento (PORTO, 2013, p. 4601.9-4601.10). Também gostaríamos de chamar a atenção que a teoria dos átomos de Lucrécio foi aprofundado no campo da mecânica quântica, destacamos as propriedades ondulatórias da partículas, na qual as contribuições do físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) foi de grande importância.
Ao longo deste modesto ensaio tentamos esboçar a influência da escola materialista, cujo maior representante que possuímos conhecimento até o momento é Lucrécio, a partir da sua obra, percebemos a sua repercussão em diversas frentes, isto é, De rerum natura é fundamental para compreendermos a ruptura da explicação da natureza a partir de uma perspectiva divina para uma explicação mais atrelada a física, a existência da matéria primordial, que posteriormente será traduzido para átomo. Mesmo que a poesia de Lucrécio tenha sido escrito na antiguidade, ao longo da história da ciência, mais especificamente, a ciência contemporânea, percebemos a beleza, a riqueza e a complexidade de sua filosofia, todos estes tópicos mais que justificam a grandeza e a influência de Lucrécio.
Referências:
BATISTA, Rodrigo Siqueira; BATISTA, Romulo Siqueira; BRAGA, Elcio Andrade; NETO, José Abdalla Helayel. “O atomismo de Lucrécio: física e descontinuidade.” Physicae, v. 4, n. 1, p. 19-22, 2003. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/physicae/article/view/13465. Acessado em 3 de setembro de 2022.
CARROLL, Sean. The first quantum cosmologist, 2008. Disponível em: https://www.preposterousuniverse.com/blog/2008/08/21/the-first-quantum-cosmologist/. Acessado em 3 de setembro de 2022.
KONSTAN, David. “Epicurus.” The Stanford encyclopedia of philosophy, 2018. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/epicurus/. Acessado em 25 de agosto de 2022.
LUCRÉCIO. Sobre a natureza das coisas. Tradução, notas e paratextos de Rodrigo Tadeu Gonçalves, Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2021.
NAIL, Thomas. “Lucrécio, nosso contemporâneo.” In: LUCRÉCIO. Sobre a natureza das coisas. Tradução, notas e paratextos de Rodrigo Tadeu Gonçalves, Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2021.
O ÁTOMO DE SCHRODINGER. Disponível em: https://www.ifi.unicamp.br/~fauth/1OrigensMecanicaQuantica/3OatomodeSchrodinger/OatomodeSchrodinger.html. Acessado em 3 de setembro de 2022.
SEDLEY, David. “Lucretius.” The Stanford encyclopedia of philosophy, 2018. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/lucretius/. Acessado em 25 de Agosto de 2022.
PORTO, Claudio Maia. “O atomismo grego e a formação do pensamento físico moderno.” Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 35, n. 4, p.4061-4061.11, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbef/a/gZRXfzzcg7K6BprgxfLxRDR/?lang=pt. Acessado em 3 de setembro de 2022.
SIMÕES, Vivian Gregores Carneiro Leão. “Lucrécio. Da natureza das coisas. Tradução (do latim), introdução e notas de Manuel Gaspar Cerqueira. Lisboa, Relógio d’Água, 2015, 416 p.” Codex - Revista de estudos clássicos, v. 5, n. 1, p. 224-229, 2017. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/CODEX/article/view/10131. Acessado em 25 de agosto de 2022.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE RETÓRICA. Jornadas duplas de retórica: Dr. Rodrigo Tadeu Gonçalves (UFPR) e Dr. Marco Valentim (UFPR) - 26/04/2022. 1 vídeo (2h. 15 min. 26 seg.), 2022 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HcgyOS9A684. Acessado em 25 de agosto de 2022.
ULPIANO, Claudio. “Aula de 17/06/1992 – Lucrécio: verdadeiros e falsos infinitos.” Acervo Claudio Ulpiano. Disponível em: https://acervoclaudioulpiano.wordpress.com/2016/07/08/lucrecio-e-os-verdadeiros-e-falsos-infinitos/. Acessado em 1 de setembro de 2022.
[1] Ao longo do texto iremos adotar a seguinte padronização DRN Livro, versos.
[2] Como foi mencionado no corpo do texto, em momento algum do DRN, Lucrécio menciona a palavra “átomo”, se retomarmos a língua original da obra, percebemos que o filósofo utiliza a palavra “rerum primordia” (DRN Livro I, verso 270, 2021, p. 35 ).
Na mais recente tradução para língua portuguesa, Rodrigo Tadeu Gonçalves (2022) relata os seus objetivos em traduzir a obra de Lucrécio o mais próximo possível do original, assim como relata a dificuldade em traduzi-lo (SOCIEDADE BRASILEIRA DE RETÓRICA, 2022).
[3] Ao comentar sobre o processo da tradução de DRN, Rodrigo Tadeu Gonçalves, comenta sobre as diferenças metodológicas de Epicuro e de Lucrécio, enquanto o primeiro preferia escrever em prosa, Lucrécio optou por escrever a sua obra em forma de poesia, além disso, o tradutor também comenta sobre a ironia na escrita do poeta romano, se houver alguma possibilidade em admitir algum deus no materialismo, certamente esse deus seria Epicuro, segundo Lucrécio (SOCIEDADE BRASILEIRA DE RETÓRICA, 2022).
[4] Além da distinção da física aristotélica e a física lucreciana, Claudio Ulpiano chama a atenção para a distinção de como os filósofos compreendiam por infinitos, enquanto Aristóteles compreende o infinito como infinitos potenciais Lucrécio compreende como infinitos atuais (ULPIANO, 1992).
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