sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Apocalipse zumbi como metáfora da pandemia

Inicialmente este pequeno ensaio foi concebido como trabalho de conclusão da disciplina Tópicos Especiais História da Filosofia Contemporânea I, ministrado pela Profa. Dra. Juliana Fausto e Prof. Dr. Marco Antonio Valentim, disciplina ofertada no curso de graduação do curso de filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) . Agradeço aos amigos Matheus Garcia e Tayeshi Kadosaki pelos comentários durante a formulação do ensaio.


Estamos nós, os humanos, histéricos, diante
da possibilidade do fim do nosso mundo.
Enquanto isso, para a manutenção do que
pretendemos salvar, aniquilamos
diariamente muitos mundos e ponto de vista.*


Ao longo da história, a filosofia é tida como inútil, na contemporaneidade não é
diferente. Mesmo em contexto de pandemia, a filosofia, consequentemente, os filósofos,
são tidos como inúteis. Entretanto, a filosofia, não tem a pretensão de propor uma solução
que erradique ou minimize o corona vírus (COVID-19), ou seja, a contribuição da filosofia
é mais modesta comparada com as demais áreas do conhecimento como a biologia ou a
medicina. A contribuição da filosofia está na reflexão e no desdobramento da mesma. A
finalidade deste texto é propor uma reflexão que contribua de algum modo no debate
político sobre a pandemia do COVID-19 através da imagem que temos sobre o apocalipse zumbi.
Percebemos, assim, como a questão da extinção é moldada, em
um certo imaginário, segundo categorias da ficção científica. A
antropóloga Genese Sodikoff, a esse respeito, comentou que “a
adoção, por parte dos biólogos conservacionistas, da metáfora do
zumbi [...] e a imensa popularidade dos temas apocalípticos e de
zumbi nas TVs europeia e americana diz algo sobre a experiência
subjetiva da mudança planetária no Norte do globo e sobre os
modos como projetamos a forma das coisas que virão. ‘Este é
nosso evento de extinção’, diz um personagem na série de zumbis
The Walking Dead” (FAUSTO, 2015, p. 04).
 A extinção da espécie humana sempre esteve no imaginário do mesmo, a partir
dos meados da década dos anos 1960, a sugestão de um apocalipse zumbi começa a ser
apresentado as massas através do cinema. Damos destaque ao primeiro filme da trilogia
dos mortos-vivos do diretor estadunidense George Romero, Night of the Living Dead
(1968). No longa-metragem somos apresentados a um casal de irmãos que são atacados
por um personagem misterioso (morto-vivo), após sobreviver ao ataque da criatura, a
garota Barbara foge para uma casa que supostamente não tem ninguém na casa, para a
surpresa da jovem sobrevivente, existe um pequeno grupo de sobreviventes na casa que
surgem com o desenrolar da trama, juntos os personagens tentam descobrir como os
mortos-vivos foram reanimados, ao mesmo tempo tentam sobreviver a nova ameaça,
uma ameaça que não ser contida, uma ameaça que pode extinguir a espécie humana da
face do planeta. Após o sucesso do longa-metragem, Romero, ira retornar a temática do apocalipse zumbi em produções posteriores, além dos filmes de Romero, outros cineastas
irão abordar a temática do apocalipse zumbi (ao seu modo) no cinema, ou seja, o
apocalipse zumbi tornou-se pop. 
O enredo dos filmes é quase sempre o mesmo: um vírus ou
infecção, geralmente causado por intervenção humana direta
(uma tentativa de vacina ou outro experimento médico que deu
errado) contamina, em pouco tempo, grande parte da
humanidade, que se converte em zumbis, mortos-vivos que
perseguem os poucos não contaminados para contagiá-los ou
comê-los**.
 Partimos do pressuposto que o apocalipse zumbi é resultado da hiperaceleração
do capitalismo, isto é, o homem provocou a sua própria destruição. Entretanto, além de
não estar preocupado com a extinção da própria espécie, o regime capitalista contribui
para a extinção de outras espécies, a especie não-humana. Antes de dar prosseguimento
é valido dizer que o que denominamos como não-humano é aquele que não se encaixa na
lógica capitalista, ou seja, são os povos indígenas, comunidades quilombolas, árvores,
animais, rios e etc.
Ailton Krenak, em seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019), convida
o leitor a refletir sobre o conceito de humanidade: “Talvez estejamos muito condicionados
a uma ideia de humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão,
talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo”
(KRENAK, 2019, p. 29).
Segundo a proposição de Krenak, o conceito de humanidade proposta pela modernidade
não é suficiente quando tentamos refletir/dialogar com os demais povos, sejam eles
humanos ou não humanos. No posfácio do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo,
redigido por Eduardo Viveiros de Castro, a crítica de Krenak é mais explicito ainda:
“A pergunta que Ailton Krenak dirige aos leitores neste livro é tão simples quanto
inquietante: «Somos mesmo uma humanidade?»”(VIVEIROS DE CASTRO, 2020, p. 2).
Se a horda zumbi é resultado da hiperaceleração do capitalismo, os humanos
remanescentes são aqueles que os modernos chamavam de selvagens ou não-humanos,
isto é, povos que não aderiram ao sistema capitalista e vivem
marginalmente/paralelamente a esse sistema, em outras palavras, os humanos
remanescentes são as comunidades quilombolas e as tribos indígenas.
Ao subverter a raciocínio moderno, isto é, ao tomarmos o apocalipse zumbi como
consequência e estágio final do capitalismo e declararmos que os humanos remanescentes
serão os não-humanos (indígenas e quilombolas), percebemos que houve uma virada
(subversão) ontológica. Em outras palavras, o pensamento moderno não é o suficiente
para compreendermos a realidade. Se insistirmos no projeto moderno, isto é, o
capitalismo, a espécie humana estará fadada à extinção, é necessário que haja meios para
reverter tal cenário, isto é, um final catastrófico. 
Um vírus é um parasita que se replica às custas de seu hospedeiro, às
vezes matando-o. É isso que o capitalismo tem feito com a Terra desde
o início da revolução industrial, durante muito tempo sem sabê-lo.
Agora sabemos, mas parece que temos medo da cura, que também
conhecemos, ou seja, uma reviravolta em nossos modos de vida***.
Assim como o vírus zumbi, o capitalismo também é um vírus, como aponta
Descola, entretanto, insistimos em tentar conviver “harmoniosamente” com esse vírus, no
entretanto, como é demonstrado nos filmes de zumbi, e também com o advento da pandemia,
é impossível coexistir de modo harmonioso com o vírus, ou seja, o que está em jogo não
é a retórica ou o discurso político (embora exista um projeto político de extermínio,
promovido por governos autoritários/neofascistas), o que está em jogo é a vida, vida
humana, não-humana e as demais cosmologias existentes no planeta.
O advento da pandemia do COVID-19 trouxe a tona a ineficácia do modelo
capitalista (e também do modelo neoliberal), se a espécie humana insistir em prosseguir
com o capitalismo, a vida será extinta, os novos habitantes do planeta será os monstros,
isto é, zumbis e máquinas. Um possível modo da espécie humana existir no planeta é
coexistindo harmoniosamente com os não-humanos, ou seja, o humano além de conviver
deve apreender e compreender a cultura e a ciência/metafísica não humana para que
ambos possam adiar o fim do mundo de um modo tão catastrófico.

 *FAUSTO, Juliana. Rato candango, homem zumbi. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 08, página 12 -17, 2015. Disponível em: https://piseagrama.org/rato-candango-homem-zumbi/. Acessado em Agosto de 2020.
** CERA, Flávia; NODARI, Alexandre. A horda zumbi. RaSTROS, 6: 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/rastros/rastrosn6s.pdf. Acessado em agosto de 2020.
***DESCOLA, Philippe. Nós nos tornamos vírus para o planeta. In: Pandemia Crítica (n-1 edições), n. 75. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/137. Acessado em agosto de 2020.

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