Inicialmente este pequeno ensaio foi concebido como trabalho de conclusão da disciplina Tópicos Especiais História da Filosofia Contemporânea I, ministrado pela Profa. Dra. Juliana Fausto e Prof. Dr. Marco Antonio Valentim, disciplina ofertada no curso de graduação do curso de filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) . Agradeço aos amigos Matheus Garcia e Tayeshi Kadosaki pelos comentários durante a formulação do ensaio.
Estamos nós, os humanos, histéricos, dianteda possibilidade do fim do nosso mundo.Enquanto isso, para a manutenção do quepretendemos salvar, aniquilamosdiariamente muitos mundos e ponto de vista.*
Ao longo da história, a filosofia é tida como inútil, na contemporaneidade não é
diferente. Mesmo em contexto de pandemia, a filosofia, consequentemente, os filósofos,
são tidos como inúteis. Entretanto, a filosofia, não tem a pretensão de propor uma solução
que erradique ou minimize o corona vírus (COVID-19), ou seja, a contribuição da filosofia
é mais modesta comparada com as demais áreas do conhecimento como a biologia ou a
medicina. A contribuição da filosofia está na reflexão e no desdobramento da mesma. A
finalidade deste texto é propor uma reflexão que contribua de algum modo no debate
político sobre a pandemia do COVID-19 através da imagem que temos sobre o apocalipse zumbi.
Percebemos, assim, como a questão da extinção é moldada, emum certo imaginário, segundo categorias da ficção científica. Aantropóloga Genese Sodikoff, a esse respeito, comentou que “aadoção, por parte dos biólogos conservacionistas, da metáfora dozumbi [...] e a imensa popularidade dos temas apocalípticos e dezumbi nas TVs europeia e americana diz algo sobre a experiênciasubjetiva da mudança planetária no Norte do globo e sobre osmodos como projetamos a forma das coisas que virão. ‘Este énosso evento de extinção’, diz um personagem na série de zumbisThe Walking Dead” (FAUSTO, 2015, p. 04).
A extinção da espécie humana sempre esteve no imaginário do mesmo, a partir
dos meados da década dos anos 1960, a sugestão de um apocalipse zumbi começa a ser
apresentado as massas através do cinema. Damos destaque ao primeiro filme da trilogia
dos mortos-vivos do diretor estadunidense George Romero, Night of the Living Dead
(1968). No longa-metragem somos apresentados a um casal de irmãos que são atacados
por um personagem misterioso (morto-vivo), após sobreviver ao ataque da criatura, a
garota Barbara foge para uma casa que supostamente não tem ninguém na casa, para a
surpresa da jovem sobrevivente, existe um pequeno grupo de sobreviventes na casa que
surgem com o desenrolar da trama, juntos os personagens tentam descobrir como os
mortos-vivos foram reanimados, ao mesmo tempo tentam sobreviver a nova ameaça,
uma ameaça que não ser contida, uma ameaça que pode extinguir a espécie humana da
face do planeta. Após o sucesso do longa-metragem, Romero, ira retornar a temática do apocalipse zumbi em produções posteriores, além dos filmes de Romero, outros cineastas
irão abordar a temática do apocalipse zumbi (ao seu modo) no cinema, ou seja, o
apocalipse zumbi tornou-se pop.
O enredo dos filmes é quase sempre o mesmo: um vírus ouinfecção, geralmente causado por intervenção humana direta(uma tentativa de vacina ou outro experimento médico que deuerrado) contamina, em pouco tempo, grande parte dahumanidade, que se converte em zumbis, mortos-vivos queperseguem os poucos não contaminados para contagiá-los oucomê-los**.
Partimos do pressuposto que o apocalipse zumbi é resultado da hiperaceleração
do capitalismo, isto é, o homem provocou a sua própria destruição. Entretanto, além de
não estar preocupado com a extinção da própria espécie, o regime capitalista contribui
para a extinção de outras espécies, a especie não-humana. Antes de dar prosseguimento
é valido dizer que o que denominamos como não-humano é aquele que não se encaixa na
lógica capitalista, ou seja, são os povos indígenas, comunidades quilombolas, árvores,
animais, rios e etc.
Ailton Krenak, em seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019), convida
o leitor a refletir sobre o conceito de humanidade: “Talvez estejamos muito condicionados
a uma ideia de humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão,
talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo”
(KRENAK, 2019, p. 29).
Segundo a proposição de Krenak, o conceito de humanidade proposta pela modernidade
não é suficiente quando tentamos refletir/dialogar com os demais povos, sejam eles
humanos ou não humanos. No posfácio do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo,
redigido por Eduardo Viveiros de Castro, a crítica de Krenak é mais explicito ainda:
“A pergunta que Ailton Krenak dirige aos leitores neste livro é tão simples quanto
inquietante: «Somos mesmo uma humanidade?»”(VIVEIROS DE CASTRO, 2020, p. 2).
Se a horda zumbi é resultado da hiperaceleração do capitalismo, os humanos
remanescentes são aqueles que os modernos chamavam de selvagens ou não-humanos,
isto é, povos que não aderiram ao sistema capitalista e vivem
marginalmente/paralelamente a esse sistema, em outras palavras, os humanos
remanescentes são as comunidades quilombolas e as tribos indígenas.
Ao subverter a raciocínio moderno, isto é, ao tomarmos o apocalipse zumbi como
consequência e estágio final do capitalismo e declararmos que os humanos remanescentes
serão os não-humanos (indígenas e quilombolas), percebemos que houve uma virada
(subversão) ontológica. Em outras palavras, o pensamento moderno não é o suficiente
para compreendermos a realidade. Se insistirmos no projeto moderno, isto é, o
capitalismo, a espécie humana estará fadada à extinção, é necessário que haja meios para
reverter tal cenário, isto é, um final catastrófico.
Um vírus é um parasita que se replica às custas de seu hospedeiro, àsvezes matando-o. É isso que o capitalismo tem feito com a Terra desdeo início da revolução industrial, durante muito tempo sem sabê-lo.Agora sabemos, mas parece que temos medo da cura, que tambémconhecemos, ou seja, uma reviravolta em nossos modos de vida***.
Assim como o vírus zumbi, o capitalismo também é um vírus, como aponta
Descola, entretanto, insistimos em tentar conviver “harmoniosamente” com esse vírus, no
entretanto, como é demonstrado nos filmes de zumbi, e também com o advento da pandemia,
é impossível coexistir de modo harmonioso com o vírus, ou seja, o que está em jogo não
é a retórica ou o discurso político (embora exista um projeto político de extermínio,
promovido por governos autoritários/neofascistas), o que está em jogo é a vida, vida
humana, não-humana e as demais cosmologias existentes no planeta.
O advento da pandemia do COVID-19 trouxe a tona a ineficácia do modelo
capitalista (e também do modelo neoliberal), se a espécie humana insistir em prosseguir
com o capitalismo, a vida será extinta, os novos habitantes do planeta será os monstros,
isto é, zumbis e máquinas. Um possível modo da espécie humana existir no planeta é
coexistindo harmoniosamente com os não-humanos, ou seja, o humano além de conviver
deve apreender e compreender a cultura e a ciência/metafísica não humana para que
ambos possam adiar o fim do mundo de um modo tão catastrófico.
*FAUSTO, Juliana. Rato candango, homem zumbi. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 08, página 12 -17, 2015. Disponível em: https://piseagrama.org/rato-candango-homem-zumbi/. Acessado em Agosto de 2020.
** CERA, Flávia; NODARI, Alexandre. A horda zumbi. RaSTROS, 6: 1-4. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/rastros/rastrosn6s.pdf. Acessado em agosto de 2020.
***DESCOLA, Philippe. Nós nos tornamos vírus para o planeta. In: Pandemia Crítica (n-1 edições), n. 75. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/137. Acessado em agosto de 2020.
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