segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Teorias da conspiração e a pós-verdade

Agradeço a Sérgio Queiroz pelos comentários durante a formulação deste texto.

Desde o seu surgimento a filosofia e as demais áreas do conhecimento tem dedicado a investigar e compreender um dos conceitos mais difundido e utilizado pela sociedade, que é o conceito de verdade. Cotidianamente a verdade é evocada pelo indivíduo ou certos grupos sociais. Mesmo sendo um conceito difundido regularmente, não há um consenso do que é e identificamos como verdade/verdadeiro. Por não haver consenso sobre o que é verdade é possível afirmar que é a verdade é uma entidade abstrata. Deste modo, o conceito de verdade é objeto de estudo da epistemologia e também da metafísica.
No discurso político, a noção de verdade também é mencionada rotineiramente, em algumas ocasiões até banalizada. Em tempos de teorias da conspiração, fake news são difundidas com frequência através da mídia e redes sociais e o discursos alinhados à pós-política e  pós-verdade é pertinente comentar sobre o que é a verdade e os seus desdobramentos.  
Na contemporaneidade podemos ver a deturpação do conceito verdade nas teorias da conspiração, as séries estadunidenses televisivas The X-Files (1993-2018) e Project Blue Book (2019-2020) contribuem para compreendermos como funciona a construção das teorias da conspiração e seus desdobramentos no campo político e nas massas.
Tanto em The X-Files quanto em Project Blue Book, percebemos que a teoria da conspiração surge a partir da desconfiança/paranoia e descrença na ciência e na narrativa histórica oficial, percebemos estas atitudes em personagens como Os Pistoleiros Solitários e Fox Mulder (The X-Files) e Dr. J. Allen Hynek (Project Blue Book). Em ambas as séries a trama se passa em torno da questão sobre a ufologia, isto é, estamos sozinhos no universo? Se sim, por que o governo (estadunidense) oculta a existência de alienígenas do grande público? Em ambas as tramas percebemos que a narrativa oficial, isto é, a verdade que conhecemos não passa de uma manipulação orquestrada por um grupo ultrassecreto, sendo este grupo mais poderoso e influente do que os líderes das grandes potências mundiais. A partir desta constatação, cabe aos protagonistas confrontar este grupo e expor a verdade para o grande público. Embora a proposta das séries seja apenas de entreter o espectador, ambas as séries contribui para situar e compreender o debate sobre o revisionismo*/negacionismo que visa deturpar o que chamamos de verdade e narrativas oficiais. 
Para darmos  prosseguimento recorreremos a algumas definições sobre verdade**:

Dicionário de Filosofia Nicola Abbagno. Verbete Verdade.
Validade ou eficácia dos procedimentos cognoscitivos. Em geral, entende-se por verdade a qualidade me virtude da qual um procedimento cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode ser aplicada tanto às concepções segundo as quais o conhecimento é um processo linguístico ou semiótico. Ademais, tem a vantagem de prescindir da distinção entre definição de verdade e critério de verdade. Essa distinção nem sempre é feita, nem é frequente; quando feita, representa apenas a admissão de duas definições de verdade. Por exemplo, quando se faz a distinção entre teoria da correspondência e critério de verdade, este é definido como evidência recorrendo-se ao conceito de verdade como revelação, e a teoria da verdade como conformidade a uma regra apresentada por Kant como critério formal ao lado do conceito de verdade como correspondência, torna-se então uma definição da própria verdade. 

Dicionário Oxford de filosofia. Verbete Teoria da verdade como coerência.
Perspectiva de que a verdade de uma proposição consiste em pertencer a um certo conjunto apropriadamente definido de outras proposições: um conjunto consistente, coerente e possivelmente ainda dotado de outras virtudes, desde que não sejam definidas em termos de verdade. Esta teoria, apesar de surpreendente à primeira vista, tem dois pontos fortes: (I) é verdade que testamos  as crenças quanto à sua luz de outras crenças (entre elas crenças perspectivas); (II) não podemos sair do nosso melhor sistema de crenças, para ver como está ele se saindo em termos de sua correspondência com o mundo. 

Dicionário Oxford de filosofia. Verbete Verdades necessárias/contingentes.

Uma verdade necessária é aquela que não poderia ser outra coisa. É uma verdade que é sempre verdadeira sob quaisquer circunstâncias. Uma verdade contingente é aquela que é verdadeira, mas que poderia ter sido falsa. Uma verdade necessária é a que tem de ser verdadeira; uma verdade contingente é a que acontece de ser verdadeira, ou que é verdadeira tal como as coisas são, mas que não tinha de ser verdadeira.

Ao longo da história percebemos o papel que as teorias da conspiração tiveram em certos grupos políticos, antes da ascensão do nazismo na Alemanha, os judeus foram alvos das teorias da conspiração. O filme alemão Nosferatu (1922) de modo subjetivo, através do personagem do Conde Orlok e a cena do navio com os ratos contribuiu para denegrir ainda mais a reputação dos judeus. Outra obra que contribui grandemente para a fomentação de teorias da conspiração contra o povo judeu é o texto Os Protocolos dos Sábios de Sião (1903). Deste modo, percebemos a relevância do negacionismo e a propagação das teorias da conspiração para os regimes autoritários que surgiram ao longo da história, como o fascismo e o nazismo, damos mais destaque ao último pois as propagandas e o discursos do nazismo são "fundamentados" em teorias da conspiração.                                                            Ainda sobre as teorias da conspiração, é possível relacionarmos com o conceito de pós-verdade. Em poucas palavras podemos definir pós-verdade como uma extrapolação da verdade, em outras palavras, com a verdade é relativa, não existe verdade. Entretanto, se aceitarmos tais premissas: que a verdade é relativa ou que a verdade se resume a retórica, estaremos aceitando o discurso anticientífico, consequentemente estaremos contribuindo para o obscurantismo da ciência. Deste modo, ao invés do futuro da humanidade ser próspera, o futuro da humanidade estaria fadada a regressão. Ou seja, a pós-política e a pós-verdade são instrumentos subjetivos que contribui para a consolidação de uma sociedade do controle. Uma sociedade que se voluntariou para ser um detento, isto é, a sociedade contemporânea vive em uma prisão ao ar livre.                                                                                                               Para concluir cabe fazer a seguinte questão: com todo o avanço científico/tecnológico estaria a humanidade condenado a catástrofe como foi retratado no final do filme  Planeta dos Macacos (1968) ou a um futuro distópico como retratado no livro de George Orwell 1984?

*Sobre o revisionismo cabe fazer o seguinte ressalto: ao longo da história o revisionismo é usado para avançarmos, seja conceitualmente, seja no sentido prático da coisa. A crítica que pretendemos fazer ao revisionismo é o mal uso do conceito.
** Por questão de espaço foram selecionados trechos dos verbetes.

Para assistir:


Para assistir (séries):

The X-Files (1993-2018)
Project Blue Book (2019-2020)

Para ler:


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

One Piece, anarquismo e liberdade

O mangá de Eiichiro Oda, One Piece (1997- ) certamente é um dos mangás mais difundido e longevo da atualidade, o mangá ganhou uma adaptação animada em 1999, que também está no ar até o momento. One Piece pertence ao gênero shounen, comumente este gênero é voltado ao publico adolescente masculino, o shounen basicamente segue a seguinte formula: acompanhamos o desenvolvimento do personagem principal (jornada do herói) e lutas entre personagens masculinos fortes.
Em One Piece, acompanhamos  as aventuras de um jovem pirata Monkey D. Luffy e sua tripulação, os Piratas do Chapéus de Palha, além de enfrentar outros piratas e a marinha (Estado), Luffy possui o objetivo de tornar-se o maior pirata de todos os tempos, o Rei dos Piratas, título que pertenceu ao lendário Gold D. Roger. Entretanto, se analisarmos a obra de Eiichiro Oda, perceberemos que One Piece não é apenas um produto de entretenimento, a obra de Oda possui algumas provocações, isto é, instiga o leitor/telespectador.
One Piece aborda temas como autoritarismo, gênero e racismo. Aqui daremos atenção ao debate político que a mangá/anime proporciona, abordaremos a relação entre anarquia e liberdade.
Em One Piece personagens como Gold D. Roger, Monkey D. Dragon, Monkey D. Luffy, Sabo e até mesmo Marshall D. Teach  prezam a liberdade mais do que qualquer coisa, para eles, toda forma de autoritarismo é reprovável, pois limita a liberdade. O grupo comandado por Dragon, os revolucionários, tem como principal objetivo derrubar o Governo Mundial (Estado) e devolver a liberdade a população, deste modo, os revolucionários comandados por Dragon podem ser interpretados como uma alusão aos anarquistas.
Para dar prosseguimento, recorreremos ao verbete anarquismo do Dicionário de Política, do Norberto Bobbio.
O termo Anarquismo, ao qual frequentemente é associado o de "anarquia", tem uma origem precisa do grego anarkhia, sem Governo: através deste vocábulo se indicou sempre uma sociedade, livre de todo o domínio político autoritário, na qual o homem se afirmaria apenas através da própria ação exercida livremente num contexto sócio-político em que todos deverão ser livres. Anarquismo significou, portanto, a libertação de todo o poder superior, fosse ele de ordem ideológica (religião, doutrinas, políticas, etc.), fosse de ordem política (estrutura administrativa hierarquizada), de ordem econômica (propriedade dos meios de produção), de ordem social (integração numa classe ou num grupo determinado), ou até de ordem jurídica (a lei). A estes motivos se junta o impulso geral para a liberdade. Daí provem o rótulo de libertarismo, atribuído ao movimento, e de libertário, empregado para designar o que adere ao libertarismo. 
Precisados os termos, por Anarquismo se entende o movimento que atribui, ao homem como indivíduo à coletividade, o direito de usufruir toda a liberdade, sem limitação de normas, de espaço, de tempo, fora dos limites existenciais do próprio indivíduo: liberdade de agir sem ser oprimido por qualquer tipo de autoridade, admitindo unicamente os obstáculos da natureza, da "opinião", do "senso comum" e da vontade da comunidade geral - aos quais o indivíduo adapta se constrangimento, por um ato livre de vontade. Tal definição genérica, avaliada de diversas maneiras  por pensadores e movimentos rotulados de anárquicos, pode ser sintetizada através das palavras retomadas em nosso século, por volta dos anos 20, pelo anárquico Sebastien Faure na Encyclopédie anarchiste: "A doutrina anárquica resume-se numa única palavra: liberdade"
Deste modo, percebemos a relação entre anarquismo e liberdade são intrínsecos. Mesmo sendo um conceito metafísico, a noção de liberdade possui desdobramentos na política, ao longo da história da civilização ocidental percebemos que a noção de liberdade foi modificada ao longo do tempo e também pelos grupos políticos (progressista ou reacionária). 
Partindo da concepção tradicional da filosofia, isto é, a partir do verbete liberdade tentaremos definir o que é liberdade*.
 Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é a ausência de condições e limites. II liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a auto determinação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substancia, Estado); III liberdade como possibilidade de escolha, segundo a qual liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. Não constituem conceitos diferentes as formas que a liberdade assume nos vários campos, como por exemplo liberdade metafísica, liberdade moral, liberdade política, liberdade econômica e etc. A disputas metafísicas, morais políticas, econômicas, etc, em torno da liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam.
Entretanto cabe fazer a seguinte questão: o que significa liberdade segundo uma concepção anarquista?
Assim como a maioria dos personagens de One Piece, ao refletir o que entendemos como liberdade, perceberemos que o que chamamos de liberdade não passa de uma construção social, ou um instrumento de controle do sistema capitalista. 
A partir da perspectiva anarquista é possível compreender a concepção de liberdade proposta pela democracia/capitalista como mera retorica, isto é, além de ser insuficiente e um instrumento da alienação a liberdade não é emancipatória. Segundo a perspectiva anarquista, a liberdade só é possível através de alguma revolução social, a partir disso é possível articular novos meios de vida.
Ao longo da trama de One Piece percebemos os impactos das revoluções/batalhas nos arcos da história, personagens como Gold. D. Roger Monkey D. Luffy, Monkey D. Dragon  e Kozuki Oden são personagens que expressam o ideal anarquista, além disso, percebemos qual arriscado é almejar a liberdade em sua totalidade, entretanto, os personagens não desistem de seus objetivos, deste modo, vale destacar a importância da proposição "determinação de..." na obra de Oda. 
Assim como as demais vertentes políticas, o anarquismo propõem um modo de vida, cabe ao individuo/sociedade decidir a manter o status quo, isto é, continuar a ter uma vida relativamente cômoda ou aderir aos modos de vidas alternativos... 

*o trecho (incompleto) do verbete Liberdade foi retirado do Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano.

Para Assistir:



Para ler:
Caio Túlio Costa. O que é anarquismo.
George Woodcock. Os grandes escritos anarquistas.
Noam Chomsky. Notas sobre o anarquismo.