quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Gattaca e o aprimoramento humano

Como bem sabemos, a ficção científica surge como uma especulação do futuro. Como será a sociedade do futuro? Quais serão os avanços da ciência e da tecnologia? Essas são algumas das inquietações que o gênero traz para os entusiastas da ficção científica. O longa-metragem de ficção científica estadunidense Gattaca (1997) não é diferente.
 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Em Gattaca - A experiência genética, somos apresentados a um futuro não muito distante, neste futuro somos apresentados a uma prática "incomum", durante o período de estação de uma criança, os pais possuem a liberdade de escolha em intervir no genoma da criança que está sendo gerada. Em outras palavras, os pais podem corrigir alguma anomalia genética ou até mesmo aperfeiçoar algum gene da criança que está sendo gerada. 
Desta maneira a sociedade está dividido em dois grupos: a dos válidos - indivíduos considerados como perfeito (geneticamente aprimorado) e os inválidos - indivíduos imperfeitos (pessoas que não foram geneticamente aprimoradas). 
A partir desta divisão, o funcionamento desta sociedade procede da seguinte maneira: os inválidos são condicionados não possui acesso aos melhores empregos, as melhores funções ou até mesmo de desfrutar de certos prazeres carnais. Já os válidos são o inverso.
No início do longa-metragem conhecemos a história de dois irmãos, Vincent e Anton Freeman, o primeiro é um inválido, isto é, nasceu com diversas doenças genéticas, logo após o seu nascimento e ter o seu DNA analisado, o médico já sentencia o prazo de vida de Vincent.
Devido a imperfeição genética de Vincent os seus pais decidem ter outra criança, Anton, no entanto, ao contrário do seu primogênito, os pais decidem que Anton seja aprimorado geneticamente, ou seja, Anton é um válido. Ao longo da apresentação destes personagens torna-se cada vez mais explícito o funcionamento do preconceito genético.

Vincent (Ethan Hawke)
Entretanto, mesmo sendo um inválido, Vincent não aceita a sua condição, Vincent deseja fazer uma viagem espacial, uma atividade permitida apenas para os válidos.
Mesmo que devido a sua condição seja impossível Vincent está disposto a qualquer coisa para realizar tal viagem, mesmo que seja através da ilegalidade.
Através desta breve apresentação do longa, conseguimos notar que a ficção se tornou realidade, através dos avanços da biotecnologia, bioengenharia e da biomedicina, o aprimoramento humano (human enhancement) é possível.
 
Em rápidas palavras o aprimoramento humano pode ser compreendido como a superação da limitação humana, através da instrumentalização da técnica, essa superação pode ser temporário ou permanente.
Assim como o progresso tecnocientífico e o progresso da biotecnologia, o aprimoramento humano possui a promessa elevar a condição humana, isto é, o aprimoramento humano é o próximo passo para a evolução da espécie.
Através da técnica de edição genética, o CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) e o DGPI (Diagnóstico Genético Pré-Implantação) permite que os pais decidam alterar a estrutura genética da criança mesmo estando em fase embrionária. Em outras palavras, os métodos utilizados para alcançar o aperfeiçoamento da espécie supera os limites impostos pela natureza. O aprimoramento humano surge como um trunfo para os entusiastas do uso da tecnologia, pois segundo estes entusiastas é a tecnologia que solucionara os problemas da humanidade.
O próximo passo da evolução da espécie humana não ocorrerá por meios naturais, mas sim por meios do artificial*.
Entretanto, gostaríamos de chamar a atenção para o seguinte questionamento: quais são as implicações do aprimoramento humano em nossa sociedade, o aprimoramento não seria uma forma de eugenia?
Especialistas como Michael Sandel, Natasha Vita-More, Nick Bostrom, Nicholas Agar e Julian Savulescu tem se dedicado a este debate, seja no espaço público, seja no especializado.
Mesmo que o aprimoramento humano extingue as anomalias genéticas, prolongue o tempo de vida da espécie humana**, a sociedade como um todo teria acesso a tais maravilhas ou seria como vislumbramos em Gattaca?
Segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas questões como a aplicação ou não no aprimoramento humano não deve ficar nas mãos do indivíduo (pais), cabe ao Estado e uma série de regulamentos provindos do biodireito, ou seja, o aprimoramento humano deve ser utilizado de maneira responsável para que não afete completamente a liberdade do indivíduo e que a eugenia liberal não seja instaurada.
Desta maneira, com o surgimento do aprimoramento humano, o debate ético também retorna aos espaços público e especializado através de uma nova perspectiva, a da vida (bios), a bioética.
A bioética recebe notoriedade após os eventos do pós-guerra (Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria), como lidar com os avanços tecnológicos? Como regulamentar tais aparatos? Como utilizar a tecnologia de modo responsável? Tais questionamentos são o ponto de partida da bioética. 
Em uma sociedade tecnocientífica é necessário que o debate conjunto entre a bioética e o biodireito seja instaurado nas políticas públicas, nos ambientes públicos e especializados, deste modo retardando a hiperaceleração da extinção das espécies.
 
*Ainda é válido manter esse dualismo natural/artificial? Quais são as suas fronteiras? Uma possível resposta é não, pois já não somos uma sociedade moderna, somos uma sociedade tecnocientífica. Desta maneira, podemos concluir que estamos migrando do humanismo para o pós-humanismo (ver a figura do ciborgue descrito por Manfred Clynes e Nathan Kline). Manfred Clynes & Nathan Kline. Cyborg and space. 
**Segundo os adeptos do transhusmanismo e o pós-humanismo, a vida humana não será estendida mas sim eterna, esse processo ocorrerá através do upload da nossa consciência (mind uploading) para a inteligência artificial.
 
 
Para assistir:

 
Para ler:
 
Jürgen Habermas. O futuro da natureza humana. 
Nick Bostrom & Julian Savulescu (Eds.). Human enhancement.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Democracia jabuticaba e o paradoxo da tolerância

Este ensaio não possui a pretensão de apresentar uma reflexão refinada sobre os acontecimentos da política contemporânea nacional, este ensaio é de caráter introdutório, para aos interessados pela temática, orientamos a leitura da bibliografia mencionada.
Meus agradecimentos ao meu amigo Matheus Garcia pelas longas conversas sobre os desdobramentos da política nacional e por me incentivar a escrever este pequeno ensaio.
 
O que é democracia? O que é liberdade, quais são os limites desta liberdade? Essas são algumas das inquietações que devemos levar em consideração quando estamos interessados em compreender a contemporaneidade, para ser mais específico, os rumos da política contemporânea. 
Como bem sabemos, após os horrores das Guerras Mundiais e com a Guerra Fria (1947-1991) as disputas pelas narrativas tornaram-se cada vez mais acirradas, ao mesmo tempo houve uma tentativa global em consolidar a democracia como um regime político. 
Em rápidas palavras, a democracia pode ser entendida como um regime político em que os cidadãos participam diretamente ou indiretamente (elegem representantes políticos) na elaboração, aplicação de leis e até mesmo influenciando nas maneiras em que um determinado representante político exerce o seu poder sobre a sociedade.
Para corroborar, destacamos um trecho do verbete  "Democracia" do Dicionário de política (1998), de Norberto Bobbio (1908-2004).
"Na teoria política contemporânea, mais em prevalência nos países de tradição democrático-liberal, as definições de Democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou, como também se diz, de "procedimentos universais". Entre estas: 1) o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau; 2) junto do supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7) tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre; 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo (BOBBIO, 1998, p. 326-327).
Como podemos perceber, a concepção que temos (ou que deveríamos  ter) sobre o conceito de democracia é mais complexo do que podemos imaginar.
Através desta  concepção de democracia, é válido pressupor que em um regime democrático, os cidadão possuí direitos e deveres, um destes direitos do cidadão é a da livre expressão, mas o que é livre expressão? Em rápidas palavras a livre expressão pode ser caracterizada como um direito que o indivíduo possui para expressar as suas opiniões, atividades artísticas, científicas, intelectuais etc, sem sofrer nenhuma forma de censura por parte do Estado.
A partir desta breve apresentação do que é entendido como liberdade de expressão, é interessante nos questionar se essa liberdade de expressão possui alguma implicação ética em nossa sociedade, existe algum limite para essa concepção de liberdade?
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) introduz o Paradoxo da tolerância, para questões de didatismo iremos recorrer a famosa ilustração do paradoxo.
O paradoxo da tolerância de Karl Popper nos mostra o perigo se partirmos do pressuposto de que a liberdade de expressão é ilimitada. Antes de adentrarmos no paradoxo propriamente dito, gostaríamos de chamar atenção que ao fazermos uma rápida digressão sobre o passado do filósofo austríaco, iremos descobrir que o filósofo além de presenciar os horrores da II Guerra Mundial (1939-1945) é de origem judia. Cabe destacar que no campo da filosofia, diversos filósofos como Hannah Arendt (1906-1975), Hans Jonas (1903-1993) e Theodor Adorno (1903-1969) irão chamar a atenção para os horrores da guerra e a implicação dela ao longo dos Séculos XX e XXI nos mais diversos campos do conhecimento, no entanto, neste momento, gostaríamos de chamar atenção para o campo da ética e da política.
Ao nos voltarmos para a história da democracia no Brasil, veremos que a democracia no Brasil é recente, possui aproximadamente 56 anos, desses 56 anos, também perceberemos que há tensões.
Nas últimas décadas no cenário político tem surgido uma série de discursos que possuem clara alusão a violência a democracia, ou seja, o discurso de ódio tem ganhado força cada vez mais, o curioso é que os "defensores" do discurso de ódio argumentam que apenas estão expressando as suas opiniões, em alguns casos até sugerem há respaldo jurídico para tal.
A partir disto é possível chegar à seguinte conclusão: o que realmente acontece é uma série de equívocos, uma nação que possua um regime democrático bem consolidado não tolera passivamente o discurso de ódio/discurso do intolerante, pois esse discurso corrói a democracia. O que fazer para eliminar o discurso de intolerância? 
Uma iniciativa razoável é a de conscientização dos limites éticos e jurídicos da liberdade de expressão dentro de uma democracia.

 
Leituras recomendadas:
 
Karl Popper - A sociedade aberta e seus inimigos, vols. 1-2.

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