quarta-feira, 14 de maio de 2025

Manifesto pós-humanista (TRADUÇÃO)

 
Esta divulgação de tradução é resultado da pesquisa em desenvolvimento ao lado da minha pesquisa de mestrado em filosofia intitulado: "A controversa interpretação sobre o conceito de Übermensch na filosofia transhumanista" na universidade Federal do Paraná.
 
Robert Pepperell, professor de belas-artes na Universidade Metropolitana Cardiff (RU). 
Contato: rpepperell@cardiffmet.ac.uk
 
Publicação original disponível em: https://www.intertheory.org/pepperell.htm.
Para Tawana Tábata.
 
I. Declarações gerais
 
1. Está claro que os humanos não são mais as coisas mais importantes do universo. Este é um fato que os humanistas ainda não aceitaram.
 
2. Todo o progresso tecnológico da sociedade humana é direcionado para a transformação da espécie humana como a conhecemos atualmente.
 
3. Na Era pós-humana, muitas crenças se tornam redundantes, principalmente a crença nos seres humanos.
 
4. Os seres humanos, assim como os deuses, só existem enquanto acreditamos que eles existam.

5. O futuro nunca chega. 
 
6. Os humanos não nascem todos iguais, mas é muito perigoso não fingir que são.
 
7. Na Era pós-humana, as máquinas não serão somente máquinas.

8. Uma imperfeição dos seres humanos é que eles precisam que os outros lhes digam o que eles já sabem. Só assim eles acreditarão.
 
9. Os pós-humanistas não se deixam cair na armadilha de imaginar uma sociedade em que tudo funcionará bem. As teorias econômicas e políticas são tão fúteis quanto as previsões meteorológicas de longo prazo.

10. Surfe ou pereça. Você não pode controlar uma onda, mas pode surfá-la.
 
11. Agora percebemos que o conhecimento, a criatividade e a inteligência humanos são, em última análise, limitados.

12. As máquinas complexas são uma forma emergente de vida.

13. Uma máquina complexa é uma máquina que não compreendemos ou controlamos totalmente.

14. Conforme os computadores se desenvolvem para serem mais parecidos com os humanos, os humanos passam a se simpatizar mais dos computadores.

15. Se pudermos pensar em máquinas, então as máquinas podem pensar; se pudermos pensar em máquinas que pensam, então as máquinas podem pensar em nós.
 
II. Considerações sobre a consciência, filosofia e seres humanos 

Se a consciência (humana) é uma propriedade que emerge de um conjunto específico de condições, para sintetizá-la não precisamos remodelá-la de “cima para baixo”. Precisamos somente recriar as condições a partir das quais ela pode emergir. Para tanto, é necessário compreender quais são essas condições.
 
1. A consciência (humana) não se restringe exclusivamente ao cérebro.

2. A consciência (humana) é a função de um organismo, não de um órgão.

3. Não é possível entender a consciência estudando somente o cérebro (humano).  

4. A mente (cérebro) e o corpo (humano) funcionam juntos para produzir a consciência. Se um deles estiver ausente, a consciência é interrompida. Não existe pensamento puro isolado de um corpo. Para funcionar, o cérebro deve estar conectado a um corpo, mesmo que esse corpo seja artificial. A consciência é um efeito que surge por meio da cooperação entre o cérebro e o corpo; pensamos com todo o nosso corpo.
 
5. A consciência (humana) só pode ser considerada uma propriedade emergente. Nesse sentido, é como ferver: se houver calor, gravidade e pressão do ar suficientes, a água em uma chaleira começará a ferver. Podemos ver o que é a ebulição, podemos reconhecê-la como algo a que damos um nome, não a consideramos misteriosa, mas não podemos isolá-la das condições que a produziram. Da mesma forma, a consciência é uma propriedade que emerge de um determinado conjunto de condições.  

6. Dizer que o fluxo de consciência não é uma função exclusiva do cérebro (humano) não nega que o cérebro tenha um papel importante a desempenhar.
 
7. Os corpos humanos não possuem limites.

8. Não é possível estabelecer uma divisão finita entre o ambiente, o corpo e o cérebro. O ser humano é identificável, mas não definível.

9. A consciência (humana) e o ambiente (realidade) não se separam, eles são contínuos. 
 
10. Não há nada externo a um ser humano, porque a extensão de um ser humano não pode ser fixada.
 
11. Se aceitarmos que o cérebro e o corpo (humano) não podem ser absolutamente separados, e que o corpo e o ambiente não podem ser absolutamente separados, então ficamos com a conclusão aparentemente absurda, mas logicamente consistente, de que a consciência e o ambiente não podem ser absolutamente separados.   

12. Inicialmente, tínhamos Deus, os seres humanos e a natureza. Os racionalistas dispensaram Deus, mantendo os seres humanos em conflito perpétuo com a natureza. Os pós-humanistas dispensam os seres humanos, deixando apenas a natureza. As distinções entre Deus, a natureza e a humanidade não representam nenhuma verdade eterna sobre a condição humana. Ela somente reflete os preconceitos das sociedades que mantiveram as distinções.

13. As visões filosóficas, idealistas e materialistas pressupõem uma divisão entre o que pensa e o que é pensado - entre a mente interna (cérebro) e a realidade externa (ambiente). Se essa divisão for removida, as duas visões se tornarão redundantes.

14. Os idealistas acham que as únicas coisas que existem são as ideias; os materialistas acham que a única coisa que existe é a matéria. É preciso lembrar que as ideias não são independentes da matéria e a matéria é apenas uma ideia.

15. A maioria dos problemas filosóficos são debates sobre a linguagem. Eles surgem devido às suposições equivocadas a) de que a linguagem é consistente e b) de que, pelo fato de uma palavra existir, deve existir uma “coisa” que ela representa e c) de que as coisas representadas devem, em si mesmas, ser consistentes.

16. A lógica é uma ilusão da imaginação humana. A verdade e a falsidade não existem na natureza - a não ser no pensamento humano.
 
III.  Considerações sobre a ciência, a natureza e o universo
 
1. A ciência jamais alcançará seu objetivo de compreender a natureza última da realidade. É uma busca fútil, embora muitos cientistas ainda não reconheçam isso. O(s) universo(s) sempre será(ão) mais complexo(s) do que jamais compreenderemos.

2. O pós-humano abandona a busca pela natureza definitiva do universo e sua origem (economizando muito dinheiro no processo).

3. O pós-humano percebe que as perguntas definitivas sobre a existência e o ser não precisam de respostas. A resposta para a pergunta “Por que estamos aqui?” é não haver resposta. 

4. Para conhecer a natureza última do universo, seria necessário saber tudo sobre o universo, tudo o que aconteceu e tudo o que acontecerá. Se uma coisa não fosse conhecida, isso implicaria que todo o conhecimento do universo é parcial, potencialmente incompleto e, portanto, não é definitivo.

5. Nenhum modelo científico pode ser completo, mas sempre será parcial e contingente. Para qualquer modelo ser completo, ele teria de considerar todos os fatores influentes, por mais insignificantes que sejam. Como isso é impossível, o cientista precisa decidir arbitrariamente sobre quais fatores ignorar. Tendo ignorado alguns fatores, seu modelo está incompleto, embora isso não signifique que não seja útil.
 
6. O pós-humano reconhece que os seres humanos têm uma capacidade finita de entender e controlar a natureza.

7. Todas as origens são fins e todos os fins são origens. A teoria do caos tem sido frequentemente ilustrada com a imagem do bater de asas de uma borboleta causando uma tempestade no lado oposto do globo. Embora isso possa ilustrar a sensibilidade dos sistemas aos estados iniciais, não considera o que levou a borboleta a bater as asas - uma rajada de vento?

8. A lógica que parece consistente na escala humana não pode necessariamente ser aplicada à escala microcósmica ou macrocósmica.
 
9. Nossa compreensão sobre o universo é limitada pelo nível de resolução com o qual conseguimos visualizá-lo. O conhecimento depende dos dados - os dados variam conforme a resolução.

10. Os cientistas privilegiam a ordem em detrimento da desordem, supondo que estão descobrindo gradualmente as leis essenciais da natureza. Esse é um erro fundamental; a natureza não é essencialmente ordenada ou desordenada. O que percebemos como informação regular e padronizada classificamos como ordem; o que percebemos como informação irregular e sem padrão classificamos como desordem. A aparência de ordem e desordem implica mais sobre a maneira como processamos as informações do que a presença intrínseca de ordem ou desordem na natureza. 

11. A ciência funciona com base em uma ordem universal intrínseca. Ela pressupõe que todos os fenômenos estão sujeitos a leis físicas e algumas dessas leis são bem compreendidas, outras parcialmente compreendidas e outras desconhecidas. O pós-humano aceita que as leis não são coisas intrínsecas à natureza, nem são coisas que surgem puramente na mente, impostas à natureza. Isso reforçaria a divisão entre a mente e a realidade que já abandonamos. A ordem que comumente percebemos ao nosso redor, bem como a desordem, não é uma função exclusiva do universo ou de nossa consciência, mas uma combinação de ambos, já que não podem ser realmente separados.

12. Tudo o que existe em qualquer lugar é energia. Além do fato de que todos os processos materiais são movidos por energia, a energia tem duas propriedades principais:
A) Ele se manifesta em uma variedade infinita de formas.
B) Ele se transforma perpetuamente.
 
13. A percepção da matéria é uma ilusão gerada por interações entre sistemas energéticos no nível humano de resolução.

14. Os seres humanos e o ambiente (natureza) são expressões diferentes de energia; a única diferença entre eles é a forma que a energia assume. 

15. O pós-humano está totalmente aberto às concepções de “paranormalidade”, “imaterialidade”, “sobrenatural” e “ocultismo”. O pós-humano não aceita que a fé em métodos científicos seja superior à fé em outros sistemas de crença.
 
IV. Considerações sobre (des)ordem e (des)continuidade 

1. Ordem e desordem são qualidades relativas, não absolutas. A prova de que ordem e desordem são qualidades relativas está no fato de que elas definem uma à outra.

2. Qualquer coisa que percebemos pode ser considerada como contendo diferentes graus de ordem e desordem. A percepção de ordem e desordem em alguma coisa depende do nível de resolução a partir do qual ela é vista.

3. O que percebemos como ordenado e desordenado geralmente é determinado culturalmente. Os lógicos afirmam haver maneiras matemáticas de definir desordem, entropia e complexidade - maneiras que são independentes da subjetividade humana. Embora essas definições possam ser úteis em determinadas aplicações, elas permanecem abertas à interpretação relativista.

4. Em termos pós-humanos, as aparentes distinções entre as “coisas” não são o resultado de divisões inatas na estrutura do universo, mas sim resultado conjunto de:
A) a maneira pela qual os processos sensuais (e sensoriais) em entidades vivas operam. 
B) a variedade de maneiras pelas quais a energia se manifesta no universo.
 
5. As maneiras pelas quais as manifestações de energia são percebidas por um observador sempre podem ser descritas com duas qualidades simples: continuidade e descontinuidade. A continuidade é a não interrupção do espaço-tempo. Descontinuidade é uma ruptura no espaço-tempo. Ambas as qualidades podem ser identificadas em todos os eventos, dependendo de como eles são vistos. Mais importante ainda, ambas são experimentadas simultaneamente.

6. As manifestações de energia não devem ser consideradas intrinsecamente contínuas ou descontínuas, isto é, não há qualidades absolutas de energia. Os estados energéticos aparecerão como contínuos ou descontínuos para um observador, dependendo de sua posição visual. A qualidade da (des)continuidade é sensível ao contexto.

7. O que distingue as coisas umas das outras são as descontinuidades percebidas que elas apresentam. A diferença nas manifestações de energia entre um filósofo e uma cadeira permite que cada um deles seja distinguido.

8. O nível de complexidade em um sistema não pode ser definido em termos objetivos (ou seja, absolutos). A complexidade é uma função da cognição humana, não uma propriedade intrínseca de qualquer coisa que possamos observar.
 
V. Considerações sobre pensamento, significado e ser 

Enquanto os modelos sobre como o cérebro pode funcionar apresentarem falhas (baseados em suposições falaciosas), a criação de uma consciência sintética será impraticável.
 
1. O pensamento humano é algo que ocorre em cooperação com o corpo humano. Não é necessário identificar precisamente onde ele ocorre porque não ocorre precisamente em nenhuma “parte”.

2. É tentador pensar nos pensamentos como blocos de dados no cérebro. Isso seria um erro, por reforçar uma visão estática da atividade mental. Um pensamento é um caminho através do meio cognitivo. Pense da seguinte forma: tomando o mapa do metrô de Londres como uma analogia de como a mente funciona, algumas pessoas diriam: “Cada uma das estações no mapa representa um de nossos pensamentos e as linhas representam as ligações entre eles. As linhas são o que nos permite ir de um pensamento a outro”. O pós-humano argumenta que “um pensamento não é uma estação no mapa, mas a rota de uma estação para outra”. Ou seja, um pensamento é acionado no processo de viagem, em vez de ser um destino específico.
 
3. Uma vez que um pensamento é detectado, seja qual for o motivo, ele consiste em um processo de viagem pelo meio cognitivo que sustenta a mente. Um pensamento não existe a menos que esteja sendo pensado; caso contrário, ele permanece um campo de potencialidade ou obstáculo A viagem provável que um pensamento pode fazer após ativado define seu caminho. Pensamentos semelhantes seguirão caminhos semelhantes. 

4. Os caminhos podem ser criados de várias maneiras, incluindo experiência direta, aprendizado, cognição prévia e o próprio ato de pensar.  Em termos neurofisiológicos, os caminhos incluem, mas não se restringem a, conexões entre neurônios e a probabilidade de disparo. Além disso, o tecido neural não é uma substância estática. Ele muda continuamente em resposta à estimulação e à ativação e é tão propenso à adaptação quanto a pele ou os músculos.
 
 5. O caminho que um pensamento percorre não é unilinear da maneira como normalmente pensamos em caminhos. Um pensamento pode seguir muitas rotas diferentes simultaneamente. A ocorrência de um pensamento específico pode exigir a combinação de muitos pensamentos diferentes.

6. O fato de que pensamentos diferentes podem estar em caminhos diferentes, cada um dos quais é distinto enquanto que cada pensamento é distinto, mostra como podemos imaginar coisas que nunca vimos. É improvável que tenhamos visto uma “garota com olhos de caleidoscópio”, mas podemos imaginar como ela é fazendo uma imagem composta dos componentes, ou seja, percorrendo vários caminhos de pensamento distintos ao mesmo tempo.
 
7. A atividade do pensamento é regulada pela condução da energia no meio cognitivo. Esse meio não difere de qualquer outro sistema por representar um processo específico de transformações de energia. Quando dois pensamentos são contínuos (por exemplo, “azul” e “céu” na frase “O céu é azul”), o caminho entre cada um desses pensamentos está bem estabelecido e será necessária pouca energia para passar de um para o outro. Quando dois pensamentos não estão bem conectados (por exemplo, entre 'myrrh' e 'capstan' na frase 'The myrrh-capstan'), é necessária mais energia para fundir os pensamentos, por terem conexões menos bem estabelecidas.

8. As ideias que podem passar de uma para outra com relativamente pouco esforço (energia) podem ser consideradas contínuas. As ideias que exigem grande esforço para se deslocar entre elas podem ser consideradas descontínuas.

9. A presença ou ausência de “significado” é determinada pela quantidade de energia necessária para passar de um conceito a outro. O significado difícil surge da coexistência de conceitos que são semanticamente distantes, ou seja, quando não há uma conexão bem estabelecida entre eles. Entretanto, o caminho entre conceitos que têm pouca ou nenhuma conexão pode ser muito difícil de percorrer. Por exemplo, a frase “Echoes the wasp's virile down-plate” (Ecoa a placa inferior viril da vespa), embora não seja sem sentido, é certamente incômoda de montar pelo padrão da maioria das frases.

10. Para manter um senso de ser, o ser humano tenta estabelecer continuidade em resposta aos estímulos que recebe do ambiente. Esses estímulos são estáveis e instáveis, pois o ambiente apresenta quantidades diferentes de cada um deles. O desenvolvimento de caminhos de pensamento estáveis que correspondem a estímulos estáveis gera um senso de ordem. Com o tempo, essa estabilidade se transforma em um senso de ser. 
 
11. Se o senso de ordem não fosse perpetuamente ameaçado pela recorrência de estímulos aleatórios, não haveria compulsão para reafirmar a ordem. Da mesma forma, como os seres humanos são continuamente confrontados com estímulos aleatórios, é necessário continuar reafirmando a ordem (mantendo o significado) para que não nos dissolvamos no caos e, assim, percamos nosso senso de existência.

12. Em termos pós-humanos, não é importante como esse processo de ser ocorrerá. O mesmo efeito pode ser alcançado de várias maneiras diferentes. É verdade que podemos aprender com o humano o que é necessário para o ser, mas isso não significa que essa seja a única maneira de implementá-lo.
 
VI.  Considerações sobre incerteza 

1. O humanismo foi caracterizado pela certeza sobre o funcionamento do universo e o lugar dos seres humanos dentro dele. A era pós-humana é caracterizada pela incerteza sobre o funcionamento do universo e sobre o que é ser humano.
 
2. Na Era pós-humana, surgem perguntas que não nos incomodavam na Era humanista - O que é um ser humano? Tal entidade existe? 

3. Historicamente, poderíamos dizer que a Era pós-humana, a Era da incerteza, nasceu no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, pois foi nessa época que fomos apresentados à física quântica e ao cubismo. As consequências de ambos deixaram uma coisa clara: nas palavras de Heisenberg, “Não existem coisas, apenas probabilidades”.
 
4. A incerteza está se tornando familiar. Há incerteza sobre o emprego vitalício, sobre a teoria política e econômica, sobre o que está acontecendo com o meio ambiente, sobre se o progresso científico é sempre benéfico e sobre aonde a tecnologia está nos levando.

5. O que podemos dizer que é certo? Somente aquilo que temos de aceitar como certo por algum outro motivo.

6. Em termos pós-humanos, a incerteza não é nada a temer. O mundo sempre foi tão incerto quanto é agora. O que mudou é que agora é muito mais difícil impor autoridade, pois o aumento do fluxo de informações diminui a autoridade: há mais informações, portanto, há menos falsa sensação de certeza. A certeza, assim como a crença, só surge na ausência de informações completas.

7. A incerteza é certa. 

VII.  Considerações sobre a arte e e criatividade
 
A produção e a apreciação da arte é uma faculdade particularmente humana. Ela é frequentemente citada pelos humanistas como a mais alta expressão do pensamento humano e o que mais nos distingue das máquinas. Portanto, seria justo admitir que a Era pós-humana não pode começar plenamente até que tenhamos enfrentado esse desafio dos humanistas. Para desenvolver uma máquina que possa produzir e apreciar a arte, precisamos primeiro ter uma compreensão mais clara do que ela é. 

1. O que é arte? Uma definição útil é que ela descreve qualquer mercadoria do mercado de arte. Devemos distinguir entre um objeto de arte e um objeto esteticamente estimulante. Um objeto de arte é uma mercadoria negociada no mercado de arte. Um objeto estético é aquele apreciado por sua qualidade estética. Algo pode ser tanto um objeto de arte quanto um objeto estético, como as “Íris” de Van Gogh. Algo pode ser um objeto estético sem ser arte, como um pôr do sol ou uma íris.

2. Muitas pessoas acham que grande parte da arte moderna não é arte porque consideram que ela não tem valor estético, embora tenha preços altos no mercado de arte. Elas estão simplesmente confundindo o valor artístico e o valor estético de um objeto. Esses dois valores são bastante distintos, mas, é claro, estão ligados. “A arte é uma mercadoria como qualquer outra”, disse Daniel Kahnweiler, negociante de Picasso. A arte é uma mercadoria estética. 

3. Para ficar claro, o mercado de arte pode ser definido como um conjunto identificável de instituições e organizações comerciais que coletivamente financiam, promovem e vendem arte.

4. A arte deve ser (e sempre foi) elitista e exclusiva para manter seu valor financeiro e prestígio. Muitos artistas modernos usam o elitismo estético para garantir a exclusividade que, por sua vez, assegura a manutenção dos valores. Portanto, a arte funciona para distinguir as pessoas ricas das mais pobres.

5. A boa arte é esteticamente estimulante, a arte ruim é esteticamente neutra.

6. Os critérios que determinam se algo é esteticamente estimulante ou esteticamente neutro estão parcialmente sujeitos a mudanças sociais.

7. A boa arte sempre contém um elemento de desordem (descontinuidade), a arte ruim simplesmente reforça uma ordem preexistente.
 
8. A boa arte promove a descontinuidade, a arte ruim impõe a continuidade.

9. A descontinuidade produz experiências esteticamente estimulantes, a continuidade produz experiências esteticamente neutras.

10. A descontinuidade é a base de toda criação, mas a descontinuidade não tem sentido sem a continuidade.

11. Uma experiência estética rica é gerada pela percepção, simultaneamente, da continuidade e da descontinuidade no mesmo evento.  

12. Todo design estimulante se baseia no equilíbrio dos quocientes relativos de ordem e desordem no objeto. Isso também se aplica à composição de música e literatura. No entanto, esses julgamentos não podem ser feitos isoladamente do fato de que os valores de ordem e desordem são, na maioria, prescritos por acordo social.

13. A arte pós-humana usa a tecnologia para promover a descontinuidade. As sociedades saudáveis toleram a promoção da descontinuidade, por entenderem que os seres humanos precisam se expor a ela, apesar de si mesmos. As sociedades não saudáveis desencorajam a promoção da descontinuidade.
 
14. A criatividade não consiste na produção de algo completamente novo. A criatividade consiste na combinação de coisas que já existem, mas que antes eram consideradas separadas. A criatividade e a apreciação estética são ambas funções da capacidade humana de modificar as conexões em seus caminhos de pensamento, ou de fazer com que elas sejam modificadas.

15. O processo de estímulo estético é intensificado quando os conceitos são forçados a se unir a partir de locais relativamente diversos de forma descontínua. A quantidade de energia necessária para contemplar diversos conceitos produz o ímpeto físico de excitação conhecido por aqueles que apreciam arte. 

VIII.  Considerações sobre seres sintéticos
 
Já dispomos de máquinas que podem aprender, mas suas habilidades são atualmente limitadas pelo fato de serem lógicas. A lógica é um sistema idealizado e autorreferencial desenvolvido pela imaginação humana. Como existem poucas coisas menos lógicas em termos de comportamento do que os seres humanos, qualquer máquina que se limite a usar a lógica como base jamais apresentará características humanas. 

1. Atualmente, o resultado dos computadores é previsível. A era pós-humana começará de fato quando o resultado dos computadores for imprevisível.

2. A maioria das máquinas de inteligência artificial é hermeticamente fechada. Elas são limitadas pela complexidade dos cálculos que nossas máquinas podem realizar. Elas são sensíveis somente a um número finito de estímulos, e o quociente de aleatoriedade que as invade é relativamente pequeno.

3. O pensamento humano não é um sistema hermético e linear. Como sabemos que o cérebro (logo, a consciência humana), o corpo e o ambiente não podem ser separados, não podemos descartar o impacto de qualquer estímulo ambiental no processo de pensamento, por menor que ele possa parecer.
 
4. O que é essencial para o funcionamento da consciência humana é que a mente receba uma entrada contínua de estímulos aleatórios do ambiente. A mente humana evoluiu para absorver o inesperado - o estímulo descontínuo.
 
5. A compulsão de afirmar a ordem diante de estímulos aleatórios contribui para o nosso senso de existência. Portanto, se quisermos criar qualquer inteligência sintética que tenha um senso de ser como o que reconhecemos em nós mesmos, ela deverá ser sensível ao mesmo nível de interrupção aleatória que os humanos. Ela deve ter a compulsão de reafirmar o significado diante de estímulos estáveis e instáveis, além de ser capaz de se adaptar e aproveitar as possibilidades criativas oferecidas por estímulos não lineares.

6. Se quisermos produzir uma inteligência sintética que demonstre criatividade, precisaremos que ela possa estabelecer conexões entre seus pensamentos de forma descontínua. Isso será alcançado tornando-a perpetuamente sensível a estímulos aleatórios.
 
7. Se quisermos produzir uma inteligência sintética que demonstre apreciação estética, ela deverá poder perceber a continuidade e a descontinuidade simultaneamente, sem travar. Embora isso possa causar excitação na máquina, ainda não se sabe até que ponto seria prazeroso.

8. Os humanistas se viam como seres distintos em uma relação antagônica com o ambiente que os cercava. Os pós-humanos, por outro lado, consideram seu próprio ser como incorporado em um mundo tecnológico ampliado.