Ao partir do pressuposto de que a filosofia pop é legítima e de que possui uma metodologia própria, analisaremos a graphic novel Watchmen, a partir desta análise refletiremos sobre a desconstrução do conceito de super-herói. Ao longo da narrativa de Watchmen, a imagem comum do super-herói é desconstruída, sendo assim, problemas éticos são levantados.
Palavras-chave: desconstrução; ética; graphic novel; super-herói
Introdução
Neste trabalho são abordadas duas questões: I) é possível problematizar e refletir filosoficamente através da cultura pop? II) A partir da questão anterior será analisada através da perspectiva filosófica a graphic novel Watchmen (1986-1987), considerando que a graphic novel em questão contribui para desconstruir o conceito de super-herói, pois, na medida em que os vigilantes e os vilões desta obra não possuem poderes sobre-humanos à exceção do personagem Dr. Manhattan, suas motivações tornam-se questionáveis. Deste modo, a graphic novel nos auxilia a repensar o que é ser um super-herói, a partir dos dilemas e dos problemas enfrentados pelos personagens ao longo da trama. Para desenvolver a reflexão proposta além da própria graphic novel, será abordado o conceito de herói proposto pelo antropólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-1984) e seus desdobramentos nas mitologias antigas e modernas. Também será abordada como se deu a passagem histórica, mais especificamente a transformação do herói clássico para o herói moderno nas histórias em quadrinhos. Trabalhos de natureza acadêmica serão utilizados para desenvolver o raciocínio proposto.
Filosofia pop?!
Para um melhor entendimento sobre o conceito de filosofia pop, é interessante salientarmos o fenômeno que contribui para o surgimento da cultura pop.
O termo “cultura pop” porta uma ambiguidade fundamental. Por um lado, sublinha aspectos tais como a volatilidade, transitoriedade e “contaminação” dos produtos culturais pela lógica efêmera do mercado e do consumo massivo e espetacularizado: por outro, traduz a estrutura de sentimentos da modernidade, exercendo profunda influência no(s) modo(s) como as pessoas experimentam o mundo ao nosso redor. Nesse sentido, pode-se afirmar que a cultura pop tem óbvias e múltiplas implicações estéticas, sublinhadas por questões de gosto e valor; ao mesmo tempo em que ela também afeta e é afetada por relações de trabalho, capital e poder (PEREIRA DE SÁ, CARREIRO e FERRARAZ, 2015, p. 09).
No entanto, não há um consenso sobre o conceito de cultura pop. Dispomos de estudos sobre sua suposta origem, e também há estudos sobre a repercussão da cultura pop no cotidiano da sociedade em geral.
Vale notar que os encontros estéticos e econômicos entre as possibilidades de alta circulação da cultura pop e a busca de traços distintivos no consumo de produtos seriais mobiliza uma ampla gama de possibilidades mercadológicas e poéticas em torno do pop, criando tensões entre o que sustenta os valores na cultura pop: altos índices de vendagem, popularidade, diferenciação, distinção, reconhecimento do público ou reconhecimento crítico (JANOTTI, 2015, p.46).
Assim como a arte pop e a cultura pop, a filosofia pop também é subestimada pela hegemonia acadêmica. Entretanto, desde o seu advento vem consolidando-se, pois contribui para avaliar e refletir sobre os eventos e fenômenos que ocorrem na sociedade através da cultura. Segundo Marcia Tiburi:
Filosofia Pop é um modo de pensar filosófico, ou seja, um método, que se faz questionando a necessidade da nobreza das fontes. [...] Podemos dizer que a Filosofia Pop é a filosofia crítica da indústria cultural que assume o padrão de produção da cultura de nossa época para compreendê-lo (TIBURI, 2015, p.10).
Desta forma, consideramos que há uma metodologia, um modo de pensar próprio da filosofia pop, além da possibilidade de desenvolvimento das relações entre filosofia e cultura pop, favorecendo o diálogo com outras áreas do conhecimento, tais como a arte, a literatura e a ciência. Consequentemente, surgem novas investigações filosóficas sobre a complexidade existente no fenômeno da cultura pop.
Caracterização dos vigilantes de Watchmen
Nem todo fantasiado combatente do crime é um herói, nem todo indivíduo que possua poderes sobre-humanos é necessariamente um super-herói.
Jeph Loeb e Tom Morris
A graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons pertence a um panteão de obras que revolucionaram a leitura e a compreensão da 9.ª arte Os autores convidam seus leitores a conhecerem o universo de Watchmen. A narrativa é ambientada num Estados Unidos (anos 1985) alternativo. Nesta realidade os vigilantes mascarados existem. Na obra, o primeiro grupo de vigilantes surgiu na década de 1940: Os Homens-Minuto. Desde sua aparição os super-heróis provocam consequências diretas na política nacional e internacional para o governo estadunidense. Os EUA desta realidade saem vitoriosos da Guerra do Vietnã graças à intervenção de Jonathan Osterman, o Dr. Manhattan a pedido do então presidente Richard Nixon. Vitoriosos, Nixon não é relacionado ao escândalo de Watergate, e, deste modo o mesmo é reeleito diversas vezes.
Em meados dos anos 1960 e 1970, surgem os sucessores dos Minutemen: os Watchmen. Este novo grupo é composto pelos seguintes heróis: Comediante, Coruja II, Dr. Manhattan, Espectral II, Ozymandias e Rorschach. Entretanto, essa nova geração de vigilantes mascarados não permanece ativa por muito tempo. Em 1977, a Lei Keene é aprovada, deste modo, o grupo é forçado a dissolver-se, pois, as atuações dos mascarados são consideradas ilegais pelo governo dos EUA. Com exceção do Comediante e do Dr. Manhattan que permanecem na legalidade, pois ambos trabalham para o governo, Rorschach se recusa a aderir à Lei Keene, perdendo o status de herói(?) e, assim, tornando-se um criminoso procurado. Após 8 anos da Lei Keene, no auge da guerra fria, onde a guerra nuclear é iminente, deste modo, o juízo final é inevitável. No meio desta tensão, o Comediante é assassinado.
Quem é o herói?
Comumente o super-herói é representado como um indivíduo virtuoso, isto é, o herói é o exemplo a ser seguido, pois apresenta em maior ou menor medida as seguintes caraterísticas: bondade, coragem, defender os fracos e oprimidos, agir de acordo com a lei estabelecida pela justiça (não recorre à violência), suas motivações não são egocêntricas, e frequentemente está de acordo com os padrões estéticos estabelecidos pela sociedade. “O herói é alguém cujas necessidades são colocadas em segundo plano, para dedicar a vida ao bem comum, alguém que mesmo com grandes poderes e capacidades decide usá-las para algo mais que o benefício próprio” (FUENTES, 2017, p.78).
Deste modo, é possível fazer a seguinte leitura do herói: é uma personalidade que contribui para a formação e a manutenção da moral e dos costumes. O super-herói, ou a imagem do mesmo, é aquele que combate incansavelmente o mal (em nome da justiça, dos fracos e oprimidos). Além disso, essa cruzada contra o mal (representada pelo combate com os super-vilões) não é para se autopromover, pois o herói está preocupado com o bem-estar coletivo da sua respectiva sociedade.
Desde a antiguidade, o herói acompanha a história das civilizações, não importando a cultura de origem, com certa frequência se refere a personagens mitológicos como o rei sumério Gilgamesh, o semideus grego Hércules, o alienígena Kal-El, vulgo Super-Homem; cada um ilustrando a imagem do herói em suas respectivas culturas.
Moyers: Por que há tantas histórias de heróis na mitologia?
Campbell: Porque é sobre isso que vale a pena escrever. Mesmo nos romances populares, o protagonista é um herói ou uma heróina que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo (CAMPBELL, 1990, p. 137).
Segundo Joseph Campbell, a imagem do herói está presente em diversas culturas através dos mitos, ou seja, o mito do herói é fundamental para o desenvolvimento da civilização em geral. Ao perceber que o herói está presente em diversas culturas, Campbell formula a ideia de monomito. O monomito desenvolvido por Campbell pode ser encontrado com outra nomenclatura: a jornada do herói. Como o próprio nome já diz, a jornada do herói consiste em uma série de provações que contribuem para o desenvolvimento do herói, deste modo, após a sua aventura, o herói percebe a importância de sua aventura para a sua formação pessoal e moral (CAMPBELL, 1997, p. 137).
Entretanto, em meados da década de 1970, a concepção de herói é reformulada, surge o herói moderno/anti-herói. Com o advento da Guerra Fria (1947 -1991) e a Guerra do Vietnã (1955 – 1975), a noção de super-herói é reformulada.
Porém, como um gênero essencialmente escapista e fantasioso como os de super-heróis poderia se sustentar na brutal realidade Pós-Vietnã? A resposta surgiu em forma de catarse. Os novos heróis não mais representariam os mais novos anseios de uma sociedade, mas seus desejos mais negros e inconfessáveis (MATTOS e SAMPAIO, 2004, p. 146).
A graphic novel Watchmen surge neste contexto.
Refletindo o clima da Guerra Fria e a neurose nuclear que acometia os Estados Unidos durante os anos 80, Watchmen lidava basicamente com a questão de que o que aconteceria se os super-heróis existissem. Tal premissa permite a Moore destilar seu olhar implacável e zombeteiro sobre o combalido gênero dos vigilantes de colantes coloridos (MATTOS e SAMPAIO, 2004, p. 174).
A obra de Alan Moore e Dave Gibbons não é um quadrinho infantil, mas sim um quadrinho adulto que proporciona desconforto e inquietação.
Análise da caracterização do herói
Ao conhecer o universo e os principais personagens de Watchmen chega-se à conclusão de que a narrativa possui graus de complexidade. Ou seja, Watchmen é um quadrinho que instiga o leitor, pois a trama permite rever e desconstruir o conceito central da narrativa da graphic novel: a concepção de super-herói. Supondo tal reconstrução, é preciso questionar-se novamente: o que é um super-herói?
Se assumirmos esta idealização de um(a) indivíduo(a) perfeito(a), Watchmen desconstrói o estereótipo.
Os super-heróis de Alan Moore e Dave Gibbons em Watchmen dificilmente são reconhecíveis como “super” ou “heróis” por nós. Em lugar de uso de imagens fantasiosas estereotipadas de boas pessoas que agem por fora de um sistema de justiça incompetente, seus personagens são retratos realistas que desafiam a maneira pela qual olhamos para os cruzados mascarados. Os heróis de Watchmen levantam questões críticas sobre o que é o governo, que tem autoridade e como a coerção pode ser usada de forma legítima (IRWIN, 2009, p. 41).
A narrativa da de Watchmen contribui para tal desconstrução: os vigilantes mascarados existem, porém, eles não possuem características divinas ou messiânicas, são apenas humanos, portanto, imperfeitos. Por conseguinte, dotados de traumas psicológicos que os autores fazem questão de evidenciar.
Para a análise proposta no presente trabalho, foram selecionados trechos que apresentam as características dos personagens: Comediante, Dr. Manhattan e Rorschach.
A trama de Watchmen inicia-se com o misterioso assassinato de Edward Morgan Blake, outrora conhecido como o vigilante Comediante. Rorschach decide investigar o assassinato de Blake. Rorschach chega à conclusão de que o assassino do Comediante não é um assassino qualquer, mas sim um assassino de vigilantes mascarados. Deste modo, ele decide advertir seus ex-colegas combatentes do crime. Ao longo da trama, o vigilante mascarado marginalizado entra em contato com o todo-poderoso Dr. Manhattan. “Vou avisar o homem indestrutível que tem gente querendo matá-lo” (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 19).
Com esta breve apresentação da trama e também a apresentação de alguns personagens, retoma-se a principal questão: o que faz tais personagens serem reconhecidos como super-heróis?
Em meados dos anos 1940 são registradas as primeiras aparições de um jovem combatente do crime nas docas de Nova York, mais tarde o mesmo seria conhecido como Comediante. Sua primeira aparição leva a crer que seus métodos são duvidosos. Na mesma década, o Comediante se junta ao primeiro grupo de heróis-mascarados, os Minutemen. Entretanto, devido à tentativa de estuprar a também vigilante, Espectral I, o Comediante é expulso do grupo. Durante a Guerra do Vietnã, o mesmo é enviado ao campo batalha e durante estes eventos toda a sua brutalidade e desprezo pela humanidade torna-se explícita. Ao ser ferido no rosto por uma jovem vietnamita grávida, o Comediante atira sem qualquer remorso. Com a Lei Keene em vigor, junto ao Dr. Manhattan, o Comediante ironicamente permanece com o status de super-herói e amparado pelo Estado.
No entanto, precisamos nos perguntar o que torna o Comediante um super-herói? Não é difícil afirmar que o Comediante seja um psicopata, isto é, o alter ego de Edward Blake se apodera da imagem do herói clássico para legitimar a sua violência brutal contra os criminosos (além da brutalidade, Blake não devolvia para a polícia os espólios dos criminosos, deste modo, a sua conduta torna-se cada vez mais duvidosa). O Comediante também é retratado como um cínico, pois não enxerga o sentido da existência da humanidade. E além desta descrença ele compreende o caos que há na sociedade.
Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? [...] Blake entendia. Tratava tudo como piada, mas entendia. Ele viu as rachaduras na sociedade, viu os homenzinhos mascarados manter as coisas juntas... Ele viu a verdadeira face do século 20 e decidiu-se tornar um reflexo, uma paródia desses tempos. Ninguém sacou a piada. [...] (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 26-27).
Durante a Guerra do Vietnã, ao lado do Dr. Manhattan, o Comediante está no campo de batalha.
É março. Estou em Saigon, sendo reapresentado a Edward Blake, o Comediante, agora ele trabalha para o governo. Imagino que eu também. Blake é interessante. Jamais conheci alguém tão deliberadamente amoral. Ele condiz com o clima daqui: a loucura, a carnificina sem sentido... à medida que compreendo o Vietnã e suas implicações para a condição humana, percebo que poucos se permitiriam tal compreensão. Blake é diferente. Ele compreende perfeitamente... e não se importa[1].
Chega-se à conclusão de que o Comediante não se importa com a humanidade. Deste modo, o Comediante não possui conduta ética, sua única preocupação é combater a violência utilizando mais violência ainda. Também não existe uma preocupação de reverter tal situação. Mesmo promovendo tamanha violência, em momento algum o Estado intervém. Ao contrário, o Comediante faz o “trabalho sujo” para o Estado. Mesmo dotado de características amorais e sendo um propagador da violência, o combatente do crime ainda possui um resquício de humanidade em si. O Comediante é assassinado por descobrir algo que abalaria a humanidade, algo que abalou o próprio Comediante. Além de possuir algum afeto por Laurie Juspeczyk, a segunda Espectral, filha de Sally Jupiter (Juspeczyk) a Espectral original.
Deste modo chegamos à conclusão de que o Comediante seria uma paródia aos super-heróis clássicos, pois, mesmo sendo um combatente do crime, o Comediante representa o lado obscuro dos super-heróis, ao recorrer a violência e à brutalidade. Além disso, o vigilante demonstra prazer em usar violência contra os seus algozes, deste modo, o Comediante é um anti-herói.
Em agosto de 1959, morre em um acidente de trabalho o Ph.D. em física atômica Jonathan Osterman, porém meses depois o mesmo ressurge. Entretanto, não mais como Osterman, mas sim como Dr. Manhattan. O Dr. Manhattan é o único ser no universo de Watchmen que possui poderes sobre-humanos. Desta maneira também é considerado como um deus. Algumas de suas habilidades são: alteração da sua estrutura física, clonagem, força sobre-humana, teletransporte em nível interplanetário, manipulação da matéria ao nível subatômico, rajadas de energia que desintegram seres humanos, e uma percepção de tempo singular (Dr. Manhattan consegue observar o passado, presente e o futuro ao mesmo tempo). Entretanto, mesmo com estas habilidades sobre-humanas, o Dr. Manhattan é o que mais se distancia da imagem de super-herói, pois, após a sua ressurreição quase messiânica, ao longo da sua existência, o Dr. Manhattan vai perdendo sua humanidade.
Um corpo vivo e um corpo morto contêm o mesmo número de partículas. Estruturalmente não há diferença discernível. Vida e morte são abstrações não quantificáveis. Por que eu deveria me importar? (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 21).
Comemorando ao lado do Comediante a vitória dos EUA em um bar, uma tragédia ocorre: o Comediante mata uma garota vietcongue grávida, esta garota esperava uma criança de Blake. É neste momento que Blake percebe que o Dr. Manhattan vem perdendo a sua humanidade.
Dr. Manhattan: Blake, ela estava grávida. Você atirou nela.
Comediante: Isso mesmo. Mulher grávida. Atirei nela. BAM. Quer saber mais? Cê ficou olhando. Podia ter transformado a arma em vapor, as balas em mercúrio ou a garrafa em floco de neve! Podia ter teleportado a gente para a porra da Austrália... cê não dá a mínima pra ser humano. Eu já saquei a tua. Nunca ligou pra... como chama mesmo? ... Janey Slater, mesmo antes de dar um pé na bunda dela. Logo, vai se desinteressar pela filha da Sally Júpiter também. Cê tá se alienado, cara. Tá ficando pinel. Que Deus nos Ajude (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 15).
Ao perder a sua humanidade, o Dr. Manhattan vem se transformando em um niilista, isto é, categorias como bem e mal não possuem significância para o herói. Ou seja, mesmo sendo um combatente do crime, o Dr. Manhattan não está preocupado em fazer o bem e tão pouco combater o mal para fazer do mundo um lugar melhor.
Oriundo do latim, nihil, que pode ser compreendido na língua portuguesa como o nada, o vazio. O conceito niilismo pode ser caracterizado pela ausência de valores, seja no campo da cultura, da estética, da moral e da política (PECORARO, 2007, p. 5). No séc. XIX, através da filosofia do controverso Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), o termo niilismo recebe a devida atenção. No entanto, antes de adentrarmos sobre o uso de Nietzsche sobre o conceito, cabe neste momento, traçarmos a influência da literatura russa no filósofo alemão.
Segundo Pecoraro, é possível encontrarmos um diálogo entre a filosofia de Nietzsche e a literatura russa, sobretudo na obra Pais e Filhos (1862), de Ivan Turguêniev (1818-1883). Ao fazermos uma análise histórica do conceito de niilismo, encontramos pontos em comum na compreensão do conceito para o literato russo e para o filósofo alemão. A convergência entre os dois intelectuais seria a subversão e ausência dos valores morais construídos e desenvolvidos pela sociedade (PECORARO, 2007, p. 8-9).
Como já dissemos anteriormente, o diálogo entre o literato russo e o filósofo alemão são contundentes quando queremos compreender o niilismo.
Os leitores da obra de Turguêniev, que não se limitam à chamada crítica especializada, encontram-se em diversos campos disciplinares, muitas vezes buscando a obra do escritor russo para estudos intertextuais, frequentemente em perspectiva filosófica e em diálogo com o pensador alemão Friedrich Nietzsche [...] (SANTOS, 2011, p.100).
No artigo Nietzsche, Turguêniev e o niilismo (2011), de Vitor Cei Santos, somos apresentados ao niilismo utilizado por Turguêniev em Pais e Filhos, assim como em Nietzsche, Turguêniev crítica à modernidade, ou seja, o niilista de Turguêniev se opõem a qualquer forma de autoridade ou crença já estabelecido, para o niilista os valores culturais, morais e até mesmo o conhecimento já instaurado devem ser postos em xeque (SANTOS, 2011, p. 105-107).
Ao retomarmos o pensamento de Nietzsche acerca do niilismo compreendemos de forma mais clara a influência de seu pensamento sobre o conceito. O niilismo pode ser compreendido como crítica aos dogmas instaurados culturalmente, moralmente e teologicamente, percebemos essas características no Dr. Manhattan, pois para ele não faz sentido estar preso à moral ou ao conhecimento humano, nada disso faz sentido para o Dr. Manhattan.
Mesmo com a sua gradual perda de humanidade, o Dr. Manhattan é um trunfo para o governo estadunidense, pois representa a soberania e hegemonia dos Estados Unidos (parte da tensão política entre os EUA e a União Soviética ocorre justamente pela existência do Dr. Manhattan). Ou seja, Manhattan é um instrumento político, pois a sua presença serve como ilustração do poder bélico norte-americano. Permanece, no entanto, uma dúvida: mesmo sendo considerado uma entidade quase divina, isto é onisciente, por que Osterman se permite ser uma marionete do Estado? Nas palavras de Manhattan tais eventos já estavam determinados a serem o que são. Ou seja, segundo a sua perspectiva tudo já está pré-determinado.
Laurie: Jon, pelo amor de Deus... só de estar aqui já me dá dor de cabeça! Eu não vou aguentar seu papo de pré-determinarão.
Dr. Manhattan: Minha percepção de tempo a incomoda?
Laurie: Pra que a pergunta? Você já sabe a resposta. É tão absurdo. Quando te larguei... e a Nova Express fez as denúncias, você ficou surpreso. Por que... se já sabia o ia acontecer?
Dr. Manhattan: tudo é pré-determinado. Até as minhas reações. Laurie: E você só segue a partitura, executando as notas? É isso que você é? O ser mais poderoso do universo e não passa de uma marionete seguindo um script?
Dr. Manhattan: Nós todos somos marionetes, Laurie. A diferença é que eu enxergo minhas cordas (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 5).
Não existe liberdade, nem mesmo o Dr. Manhattan é livre. Deste modo, todo sistema orgânico de vida e inorgânico estão fadados ao destino, não há como alterá-lo. Além de não existir o livre-arbítrio, a vida não possui um sentido, ela apenas é. Em suas palavras: “Quem faz o mundo? Talvez o mundo não seja feito. Talvez nada seja feito. Talvez simplesmente seja, tenha sido, será eternamente... um relógio sem artesão.” (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 27-28).
Após vários eventos em sua vida, Walter Kovacs, filho de uma prostituta, decide tornar-se um vigilante, o Rorschach. Não muito diferente do Comediante, Rorschach recorre ao uso da violência. Rorschach é, aliás, um admirador do Comediante, em uma conversa com Laurie, sobre a tentativa de estupro da Espectral original, Rorschach afirma que o Comediante sofreu um lapso moral. Rorschach é o único vigilante que se opôs à Lei Keene, sendo transformado em um criminoso, aliás, temido por todos. Rorschach é um detetive, que possui uma ética, embora seja deturpada. Para o herói, existe apenas o bom e o mau e o mau deve ser eliminado a qualquer custo, isto é, o culpado deve ser morto.
O que impele Rorschach? Se fosse mera vingança, uma sede por retaliação ou simples ódio, ele seria um personagem muito menos interessante. Se tudo o que ele quisesse fazer fosse ferir as pessoas, seguindo as pulsões sádicas e acobertá-las com o nome de justiça, uma reminiscência do Justiça Encapuzada, ele seria fácil de ignorar ou condenar. Mas há muito mais em Rorschach. Seus motivos são puros; é a respeito da justiça, da ordem moral, aquilo que é o certo IRWIN, 2009, p. 31).
A conduta ética do personagem é influenciada pela vertente filosófica do retributivismo. O retributivismo pode ser compreendido como um meio de punir o indivíduo que desobedece a lei, este meio de punição também pode ser exemplificado através do famigerado princípio Código de Hamurabi “olho por olho, dente por dente.”
O retributivismo surge em muitas variedades diferentes, mas a maioria das formulações básicas parece incluir três elementos: 1) apenas os culpados devem ser punidos, isto é, só se pune alguém por causa de uma maldade voluntária; 2) a punição deve ser equivalente à perversidade realizada; e 3) a justificação para punir as pessoas é que devolver o sofrimento para aquilo que faz os atos ruins é, em si, moralmente bom. A ideia é a de que, se alguém causa danos ou inflige sofrimento sobre outro, isso autoriza uma punição – e a punição deve se adequar à gravidade dos crimes do malfeitor. Alguns argumentam que não há justificativas profundas para o retributivismo, que é impossível de prová-lo, e mesmo assim é verdadeiro. É simplesmente justo retornar o mesmo em troca do mesmo; retribuir os malfeitores é ao mesmo tempo justificável e bom (IRWIN, 2009, p. 31).
Além desta ética radical, após um incidente envolvendo um sequestro e assassinato brutal de uma criança de 6 anos, Rorschach “abandona” a identidade de Walter Kovacs, e, desta maneira, passa a existir apenas Rorschach.
“Não são as forças metafísicas vagas que moldam este mundo. Não é Deus quem mata as crianças. Não é o destino que as trucida ou a sina que as dá de comer aos cães, somos nós. Só nós” (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 26).
O vigilante mascarado também possui um caráter extremo, possui dificuldades para socializar-se, não gosta de mulheres, especificamente, prostitutas, também possui alguns traços de ter uma personalidade homofóbico. Entretanto, é Rorschach quem investiga a fundo o assassinato do Comediante, chegando à conclusão de que existe um assassino de vigilantes mascarados. Para concluir a trama de Watchmen, Rorschach e os demais heróis descobrem quem é o assassino de vigilantes, e o que motivou para tal, porém, matar os vigilantes não é o objetivo final do vilão, pois o seu plano real é promover um genocídio. Para evitar uma guerra nuclear, uma invasão alienígena é simulada, nesta invasão metade da população estadunidense é dizimada. Mesmo sendo trágico, os demais vigilantes concordam em não revelar quem foi que orquestrou a simulação de uma invasão alienígena, pois com a dizimação da população estadunidense a guerra nuclear foi evitada. Não concordando com os demais colegas, Rorschach decide revelar o plano e a identidade do vilão. Ao perceber que Rorschach não estava de acordo com os demais, Dr. Manhattan decide silenciá-lo, matando-o, fazendo com que Rorschach sacrifique-se em nome de seus ideais.
Ao longo da narrativa de Watchmen a imagem do super-herói clássico é desconstruída, isto é, Alan Moore e Dave Gibbons convidam para refletir sobre a seguinte questão: se os super-heróis realmente existissem, quais seriam as consequências? Em Watchmen o leitor é influenciado a crer que seria problemático, pois toda a estrutura sociopolítica, seja nacional ou internacional deve ser repensada, pois ao invés de haver ordem, o caos é propagado, não cabendo aos vigilantes mascarados combater o crime, mas sim ao Estado, pois este possui a justiça a seu favor.
Conclusão
O presente trabalho buscou apresentar de modo breve a interação entre cultura pop e filosofia, isto é, filosofia pop. Além de possuir uma metodologia própria, a filosofia pop contribui como introdução e análises temáticas em filosofia.
Ao abordar a relevância do conceito super-herói na sociedade e a desconstrução do mesmo a partir de alguns personagens de Watchmen, percebemos a consequência desta desconstrução: as condutas éticas dos heróis são questionáveis. Os vigilantes de Watchmen não são altruístas, a percepção de mundo de cada um deles é deturpada, isto é, um vigilante ultraviolento e cínico, outro mascarado com problemas psicológicos que apenas se importa em erradicar o mal a qualquer custo, e por último o único herói com habilidades sobre-humanos, no entanto não se importa com a humanidade. Ao analisarmos estes personagens percebemos a sua relação com problemas filosóficos, tais como determinismo, niilismo e retributivismo. Ao darmos uma nova roupagem a estes problemas a partir da filosofia pop, retornamos a icônica frase de Juvenal que repercutiu em Watchmen: “Quem vigia os vigilantes?”
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[1] Ibid., p. 19.